ENTREVISTA

A história do livro: marcos e transformações

Imagem: Reprodução.

Por Lucio Carvalho,
para a Especiaria.

Entrevistamos Ana Lúcia Merege, que acaba de lançar na coleção Cadernos da Biblioteca Nacional o livro A história do livro: marcos e transformações. Ana Lúcia é escritora e bibliotecária, atuando na Seção de Manuscritos da FBN. O livro reúne quase 40 artigos inicialmente publicados no website da FBN e nas redes sociais da instituição e aborda o longo trajeto do livro desde seus primórdios até este século. Aqui, Ana Lúcia esclarece mais a respeito do livro, suas motivações e preocupações com os desafios da leitura na contemporaneidade.

Especiaria Logo na apresentação do teu livro, tu mencionas que foi no período da pandemia que boa parte dos textos que integram o livro foram escritos. Antes disso, já havia te ocorrido a ideia de sistematizar esse conhecimento, ou seja, produzir um “livro” a respeito da história do livro? Quer dizer: nos interessa saber se tinhas anotações prévias, se a intenção já a rondava ou o livro decorre inteiramente da necessidade de comunicação que a pandemia de certo modo nos impôs?

Ana Lúcia Merege – A ideia de um livro, propriamente, não, mas eu já tinha de certa forma ensaiado o compartilhamento do meu conhecimento (embora não seja profundo) sobre a história da escrita, do livro e das bibliotecas. Em 1999 organizei uma exposição na Biblioteca Nacional chamada “A Escrita no Tempo”, que versou sobre o tema e teve vários textos de apoio escritos por mim; e também escrevi artigos com essa temática publicados nos Anais da Biblioteca Nacional. Sem contar minha monografia de Mestrado, que foi sobre a sobrevivência do livro frente às novas tecnologias da informação (hoje não tão novas, estávamos em outro milênio!) na qual também forneci um breve panorama sobre a trajetória do livro desde os primórdios. Ao escrever os artigos, eu apenas busquei ir um pouco mais longe dentro desse tema que me é caro, ao mesmo tempo cumprindo a tarefa que me coube durante o período da pandemia (escrever textos de divulgação), mas a ideia de reunir esses textos num livro surgiu tão logo vi a boa recepção por parte não apenas do público em geral como de acadêmicos, estudiosos do tema.

Especiaria Acredito que é no prefácio preparado pelo Professor Fabiano Cataldo de Azevedo onde ele faz uma menção muito interessante a respeito da evolução técnica do livro. Ele comenta que as bases que definem o livro, mesmo contando com uma história, permanecem sólidas ao longo do tempo, isto é, desde o modelo medieval ao e-book. Por essa afirmação, podemos ficar tranquilos, então, que o reincidente receio sobre o “fim do livro” pertence mesmo à esfera dos temores? De que forma, como escritora e bibliotecária, compreendes a relação dos leitores com o suporte “livro” através dos tempos? Já viveste ou sentiste momentos de ameaça real?

Ana Lúcia – Como escritora, bibliotecária, cidadã e mãe, eu me preocupo com a queda do interesse pela leitura e pela literatura, mas não com as transformações pelas quais passam os suportes. Se as pessoas lerem livros virtuais ou preferirem os audiolivros, não faz diferença para mim, desde que continuem a ler, produzir, debater Literatura (falo em especial do texto literário, mas ensaios e trabalhos de não-ficção contam também, claro). Minha preocupação não é com o “fim do livro”, como objeto, mas com o baixo letramento, com a desvalorização da Literatura, com o analfabetismo funcional… Eu acredito realmente que histórias mudam pessoas, e acredito na palavra, escrita e falada, como uma forma poderosa de contar essas histórias. Dito isso, embora tenha ouvido isso inúmeras vezes, não acredito que o livro deixe de existir por completo, mas certos tipos de livro sim (obras de referência, por exemplo), e também que certos suportes se tornem mais raros, substituídos por outros. O livro de papel tende a ser cada vez mais um objeto de circulação restrita, frequentemente produzido sob demanda, e a aquisição de informação tende a se dar de outras formas, com inúmeras implicações sociais, políticas e até econômicas que poderiam encher todo um livro. Quem sabe eu o escrevo um dia? 🙂

Especiaria – Em teu livro, mencionas o trabalho de muitos historiadores e culturalistas, como Peter Burke, Roger Chartier e outros. Quais são os teus livros de cabeceira em relação à história do livro? A pergunta é feita no sentido de estimular que os interessados no assunto ampliem seu conhecimento com as tuas indicações.

Ana Lúcia – Roger Chartier tem muitos trabalhos interessantes sobre o tema, é um autor que recomendo de forma geral, assim como Robert Darnton. Como eu gosto muito de livros medievais, recomendo as obras de Christopher de Hamel, em especial o introdutório “Scribes and Illuminators”, de 1992 (me ajudou muito a montar as primeiras apresentações em visitas técnicas ao setor de manuscritos na Biblioteca Nacional). “A Letra e a Voz”, de Paul Zumthor, trata de questões sobre a oralidade e a cultura escrita na Idade Média, é uma obra esclarecedora em muitos sentidos. “História da Escrita” e “História da Leitura”, de Steven Roger Fischer, são obras introdutórias bem sólidas. Agora, para a história do livro no Brasil, só posso recomendar “O Livro no Brasil”, de Laurence Hallewell, como uma base a ser complementada com os excelentes artigos universitários que vêm sendo produzidos nas últimas décadas e estão quase sempre disponíveis online.

Especiaria – Até meados dos anos 2000, antes da massificação da internet e, mais recentemente, dos dispositivos móveis, o sistema literário funcionava bem estratificadamente. No entanto, em algum momento as bibliotecas parece que deixaram de acompanhar a sociedade no seu movimento de acesso aos bens culturais, privilegiando-se mais o espaço de livrarias, shoppings-centers, etc. Será que a sociabilidade atual desfavorece o hábito da leitura? Pela tua pesquisa, quais características dos momentos históricos em que o livro teve maior evidência e relevância?

Ana Lúcia – Eu acho que os momentos mais favoráveis foram os das grandes descobertas, quando o mundo começou a se ampliar e novos horizontes se abriram. Era preciso haver quem registrasse tantas maravilhas, fornecesse combustível para sonhos e especulações, e as pessoas estavam ávidas por saber, consumir, compartilhar. Também foram importantes os momentos em que a literatura alcançou novas formas de difusão e massificação: quando a imprensa começou a se multiplicar, quando foram criados os livros de bolso, quando surgiu o cordel, o folhetim, a pulp fiction. Tudo isso dessacralizou o livro e o tornou mais acessível. Aqui no Brasil tivemos um momento favorável bastante recente com novas tecnologias de impressão, embora seja preciso levar em conta o fator da demanda de mercado. A literatura fantástica conheceu um “boom” de publicações por volta de 2005-2010, que foi impulsionado pela maior facilidade de imprimir livros, mas também pelo surgimento do livro virtual e, ainda, pelo incentivo fornecido por outros veículos, como a TV e o cinema. Muita gente publicou suas obras de fantasia porque as pessoas gostaram dos filmes de Harry Potter, da trilogia O Senhor dos Anéis, da série Guerra dos Tronos – isso propiciou um mercado consumidor que até então estava restrito a pequenos círculos. Quanto aos espaços, faz parte da dinâmica social. Se uma biblioteca tem programação cultural que consiga captar o interesse da comunidade, é mais provável que também aumente o interesse pelos livros, pelos grupos de leitura e tudo o mais que ela oferece. Claro que é um desafio cada vez maior, também por razões que, elencadas, dariam um calhamaço. Mas nós seguimos, cigarras fazendo trabalho de formiguinha.

Especiaria – No que diz respeito ao capital cultural de uma sociedade, a circulação de livros sempre foi um indicador de prosperidade e desenvolvimento. Comparados a momentos anteriores, o Brasil hoje não aparece muito bem em pesquisas quanto ao hábito de leitura. No teu livro, examinas a questão das editoras até mais ou menos os anos 70. Está nos teus planos examinar o Brasil pós-ditadura e o desempenho de editores posteriores? Como tu percebes os dados da época de Monteiro Lobato, por exemplo, em relação ao tempo atual? Já fomos leitores mais curiosos? Será que hoje temos ferramentas para avaliar a circulação de livros de forma efetiva?

Ana Lúcia – Não tenho planos de escrever sobre os anos pós-ditadura, mas sempre pode acontecer. Pois é, Lobato foi um editor que trabalhou dentro daquele ponto que citei antes: ele modernizou seu maquinário editorial, conseguiu colocar o Sítio do Picapau Amarelo dentro de centenas de escolas paulistas (antes que se expandissem ainda mais) e fez crescerem, exponencialmente, os pontos de venda de livros no Brasil. Outros editores que constam em meu livro criaram coleções, fizeram parceria com governos, investiram em publicidade, fizeram o que estava ao seu alcance para divulgar as edições. Quanto à curiosidade, sempre existiu, mas além de o livro meio que “disputar espaço” com cada vez mais formas de entretenimento (leitura literária basicamente é por prazer, então não acho errado chamar assim!), também existem mil e um fatores limitantes: preço das obras, acesso a elas (milhares de cidades não têm bibliotecas nem livrarias), desvalorização da cultura como um todo, baixo letramento literário, além da questão política. Claramente não é interesse da elite que as pessoas estudem, se eduquem, pois assim elas se tornam questionadoras, difíceis de manobrar. Então as políticas voltadas para o livro e a leitura são deixadas de lado, ou, quando existem, muitas vezes adquirem viés apenas didático ou moralizante, isso dentro de todo um projeto de despolitização dos cidadãos. Temos sim meios de avaliar a circulação e a leitura, um deles é a Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, que é levada a cabo desde 2001 (a cargo do Instituto Pró-Livro desde 2007) e que em 2024, pela primeira vez, mostrou que a parcela de não-leitores é maior que a de leitores em nosso país, considerando “leitor” toda pessoa que leu pelo menos PARTE de um livro impresso ou digital – incluindo didáticos e religiosos – nos três meses anteriores à pesquisa. É de desanimar? Sim! As cigarras vão esmorecer? Jamais! Resistiremos, firmes e fortes, lendo, escrevendo e contando histórias. Foi isso que fez de nós o que somos hoje e é isso que nos levará a sobreviver a tempos cada vez mais bicudos. Pode apostar.

Imagem: Biblioteca Nacional/Reprodução

Ana Lúcia Merege é mestre em Ciência da Informação, pelo IBICT/UFRJ-ECO e formada em Biblioteconomia pela UNIRIO. Desde 1996, trabalha no Setor de Manuscritos da Biblioteca Nacional, onde lida com material original, fontes primárias, e desempenha funções que vão da identificação de documentos até a organização de exposições. Escritora, é autora de “Contos de Fadas: origens, história e permanência no mundo moderno” (Claridade, 2010), “A ilha dos ossos” (Draco, 2014) e diversos livros especialmente dedicados à literatura fantástica.

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