A memória é uma casa lotada
que já não me comporta.
Escrevo, antes que definitivamente
se tranquem as portas.
Sou nada do lado de fora
e dentro, as paredes ruíram.
Janelas enferrujaram e o teto estala.
As telhas estão trincadas
e copiosamente chove.
§
Pássaros buscam restos do pão do dia. Vivem dos restos
os pássaros do dia.
Restos de água que o cão derramou.
Restos de sol queimam as minhas costas ainda.
Sorvo este resto de dia.
Paredes quentes e um céu vermelho.
Os cães não silenciam. Os Pássaros sim e a música.
Tudo termina e recomeça.
É quase noite / um lapso. E esta hora morta, a mais cruel.
§
Tenho andado distante – de tudo
de coisas, de gente, da vida
da poesia.
Neste meu mundo à parte
cabe apenas
dois cães de rua
que acolhi em casa
uma janela empoeirada
e um cansaço incruento
que me impede de abrir a porta.
§
Fantasmas povoavam a casa e as noites eram longas.
A vó de chinelos e meias
que pareciam sempre as mesmas (talvez fossem)
dormia cedo e acordava com as galinhas.
O avô desenhava ventos
e esculpia sonhos
de mãos vazias e olhos repletos
— de barro e pedra —
matérias primas com que compôs a música
tema das nossas vidas futuras.
Sigo sonhando catedrais de vidro e anjos de barro
(altares de pedra / lápides / epitáfios)
que a grande noite abraça.
Na nave oculta e lateral do templo, a Pietá
de Michelangelo nos resgata / réplica perfeita.
E sinos anunciam silêncios que virão como um raio
em pleno dia de sol.
§
Num jardim platônico, flores melancólicas
— ninguém.
Nydia Bonetti, 1958, engenheira civil. Escrevo para não enlouquecer — mais. Livros publicados: SUMI-Ê (2013), Editora Patuá; De Barro e Pedra (2017), Editora Urutau; Antologia Desvio para o vermelho (Treze poetas brasileiros contemporâneos) Coleção Poesia Viva/CCSP; Minimus Cantus, Projeto Instante Estante/Castelinho Edições; Tem poemas publicados na Revista Zunái, Mallarmargens, Germina, Sepé e outras.
