José Francisco Hillal Botelho
Bagé – RS
A obsessão do artista pela própria arte é um tema antigo como as mais antigas das artes – talvez tão antigo, aliás, quanto os mitos de criação, pois os primeiríssimos artistas são os deuses que criam. E é um assunto difícil, exatamente por sua antiguidade: em mãos ineptas, pode facilmente descambar na pantomima do “artista temperamental”, lugar-comum que também é velho, mas no mau sentido. O escritor francês Pascal Quignard manejou magistralmente esse tema em Tous les Matins du Monde, publicado em 1991. No mesmo ano, Quignard ajudou o diretor Alain Corneau a escrever a adaptação cinematográfica, que manteve o título do livro – aliás, um dos mais belos do cinema. Todas as Manhãs do Mundo trata da relação entre dois músicos brilhantes, que viveram nos tempos de Luís XIV: Monsieur de Sainte-Colombe e Marin Marais. Ambos foram mestres da viola da gamba; suas composições persistem, mas sabemos muito pouco de suas vidas. Quignard e Corneau imaginam, a partir dessa partitura incompleta, uma pungente parábola sobre solidão, egoísmo, fervores de alma e de carne, e o devastador desejo pelo sublime. Apesar de sua fama, Sainte-Colombe deseja viver isolado no campo, na companhia exclusiva de suas filhas, dedicando-se integralmente ao cultivo da arte. Eternamente apaixonado pela esposa que morreu, o artista viúvo leva os dias tocando sua viola num casebre solitário, sem ninguém que o escute. Sua intenção é conduzir o próprio talento aos limites do possível e do imaginável – isso numa época em que os desempenhos artísticos, na música e no teatro, não podiam ser gravados e fatalmente se perdiam no caudal do tempo. Já Marin Marais é um jovem músico ambicioso, que pretende brilhar no grande mundo. Aprende a arte de Sainte-Colombe, seduz sua filha dileta e parte para uma vida de excessos, deixando o mestre para trás, numa trilha de desolações. O confronto entre essas duas personalidades, que encarnam duas maneiras aparentemente contraditórias de encarar o mundo, a arte e o sentido da beleza, é delineado sob a presença constante de uma trilha sonora encantatória, composta pelas melodias dos personagens reais. Nesse filme de tantos acordes, somos envolvidos por uma pergunta silenciosa – de que serve uma obra-prima que só pode ser conhecida por seu próprio autor? E, ao fim, surpreendentemente, somos levados a concluir que talvez sirva a um propósito maior que todos os outros. Sainte-Colombe é interpretado pelo extraordinário Jean-Pierre Marielle. Gérard Depardieu encarna a versão madura de Marin Marais, enquanto seu filho, Guillaume Depardieu, é Marais quando jovem. Anne Brochet interpreta Madeleine, filha de Sainte-Colombe, destinada a tornar-se a grande mártir dessa bela e dolorosa elegia.
Todas as manhãs do mundo está temporariamente indisponível no MUBI e no Prime Vídeo.