Nelson Rego
Porto Alegre – RS
?
Em suspensão
Nada, nada, nada, nada do que se esperava encontrar
Linhas de fugas e encontros
?
Ela dorme. Conseguirei escrever o que Fernanda diria se pudesse? Imperativa e infantil, essa minha necessidade de escrever que dorme. Fernanda continua em coma. Segundo a maior parte da equipe médica, morta. É bela a necessidade por escrever-me criança: ela dorme. Acordará.
Em suspensão
Poderia chamar de prólogo o que escrevi ontem. Coloquei-lhe o título de: ?
Prólogo diria o que aconteceu melhor do que a interrogação?
Ficou para lá, longe, ontem é muito tempo. Foi na manhã da alegria. Cada dia é muito tempo quando a vida é decidida um dia por vez. Ficou para lá. E hoje se reapresenta.
Ontem Fernanda de novo abriu os olhos, mas foi diferente. Pela primeira vez suas pupilas acompanharam – por um segundo – meu movimento em torno da cama para ir segurar-lhe a mão no outro lado, a mão livre de cateter e do alongado tubo plástico que a ligam ao soro. Depois, voltou ao tempo congelado em que seus olhos permanecem abertos em estranha imobilidade. Seus dedos pressionaram de leve minha mão em resposta ao aperto, tão débeis que só a esperança interpreta que pressionaram em resposta ao contato. O enfermeiro viu e afirmou tratar-se apenas de movimento reflexo. Funções mecânicas permanecem operantes na ausência de vida cerebral superior, ele complementou sua explicação. Li que antigamente médicos e enfermeiros eram amorosos e menos obcecados em exibir cientificidade. Fernanda editou livro sobre isso.
Ontem foi a manhã da esperança. Por instante o olhar de Fernanda seguiu meu movimento e seus dedos responderam ao toque. Escrevi o prólogo intitulado com o sinal de interrogação.
Ela dorme. Conseguirei escrever o que Fernanda diria? Escreverei seu livro? É óbvio que não. Escreverei meu livro tentando imaginar como seria o seu.
Fernanda vislumbrou três direitos cósmicos nas entrelinhas de livros de autores que ela e Teófilo editaram. Três direitos que parecem estar brincando de aparecer e em seguida se esconder, fugindo aos próprios autores, aos leitores, nos chamando a procurá-los. Direito a viver numa casa. Direito a ter alma. Direito à família. Ela se referiu a casas para além das paredes, chão e teto que encaixam a existência que ali dorme e senta-se à mesa. Alma, o que é? Família, além de um modelo e circunscrição. Por que Fernanda colocou a alma no meio, não no ápice dos três direitos em ascensão? Acredito intuir o que ela responderia.
Embolia pulmonar e parada cardiorrespiratória interromperam nossas conversas diárias. Escrever será meu jeito de ouvi-la no escritório, caminhar no parque com Fernanda e Teófilo. Seguro sua mão, converso próximo do ouvido para que talvez me escute. Enquanto espero.
Nada, nada, nada, nada do que se esperava encontrar
Começarei pelo hospital, uma casa, e pelo livro Nascimento e morte, a invenção hospitalar da humanidade. Lembro como se acontecido ontem aquele momento. Fernanda interrompera a tradução para se revigorar com xícara de café, Teófilo prosseguia hipnotizado por não sei o que a ser assimilado na tela do computador, eu folhava atlas de mapas históricos da partilha da África pelas potências europeias. Fernanda se deliciava com o café diante da vidraça embaçada pela chuva e da paisagem cinza e verde de prédios e árvores. Ela gostava de permanecer à janela nos dias chuvosos, aliás, gosta, pois voltará a estar na janela, a observar guarda-chuvas apressados andares abaixo, brincar de adivinhar as fisionomias das pessoas encobertas. Voltará a estar sem pensamentos diante da chuva, em silêncio interior, sei que é assim porque contamos um para o outro as atmosferas que se apresentam em nossas mentes.
Ela de súbito se virou e Teófilo, em resposta ao chamado telepático, migrou da tela do computador ao escritório e ligou seu olhar ao da esposa. Ela declarou, apontando para o outro computador, onde trabalhava na tradução, “Téo, precisamos trazer Gilles Hyppolite ao Brasil”. Teófilo fitou em silêncio a amada, sorriu e, sem precisar de palavras, retornou ao trabalho na tela. Estava decidido que Gilles Hyppolite viria pela primeira vez ao Brasil.
“O pátio desta Santa Casa de Misericórdia faz parte do mundo de Gilles, observa como o silêncio reconfortante deste lugar, feito de canteiros, flores, caminhos, bancos embaixo de ramagens e passarinhos, contrasta com os lamentos dos enfermos no pavilhão deteriorado que visitamos pela manhã. Gilles virá e o lançamento do livro será na forma de palestra. Não, melhor, será um debate. Está de acordo? Precisamos convidar antropólogo brasileiro que contraponha nossa realidade aos sonhos felizes do francês, combinado? Antropólogo? E, se em vez de letrado, procurarmos o brasileiro entre as parteiras que navegam o Madeira? Sim? Concorda? Podemos pedir ajuda àquele barqueiro, o Bigode, lembra? Era em Pau Queimado, o seu cais, eu acho.”
Foi mais ou menos isso que Fernanda me disse quando descansamos no banco sob a ramagem florida, em sintonia com o pensamento de Gilles. A ramagem acolhedora de pausas e esperanças de curas, no pátio interno da Santa Casa de Misericórdia. Ali descansamos no final do dia dedicado a percorrer hospitais. O percurso era por Gilles. Fernanda e eu conversamos sobre o livro visitando prédios. Finalizamos o dia na Santa Casa, o hospital em parte dedicado ao cuidado dos pobres, por longo tempo abandonado pelas atenções do poder público. Agora a Santa Casa se encontrava com espírito médico fortalecido e restaurados os seus prédios, jardins, arquitetura e equipamentos pelos esforços de muitos. Pela manhã visitáramos outro hospital para pobres, entregue ao descaso que tantas vezes se fazia regra, pessoas enfileiradas se submetiam a demoradas esperas enquanto doença e urgência lhes devoravam por dentro corpo e mente.
Reproduzi apenas aproximado o que Fernanda falou. Hoje, 2019, faz vinte anos que lá estivemos sentados sob a ramagem, no pátio interno, a planejar a edição do livro de Gilles Hyppolite e sua primeira vinda ao Brasil. Impossível que eu lembre exatas as palavras. Invento um tanto. Ao tom e sentido, a esses sou quase fiel, Fernanda, eu tento.
Não, não era Pau Queimado o nome da cidadezinha onde embarcamos aos cuidados do condutor chamado Bigode. Pau Queimado sequer era uma cidadezinha. Eu corrigi o engano durante a conversa e nós dois atinamos o motivo do lapso. Em Pau Queimado, assistimos o parto e a frágil grávida de doze anos nos marcou de maneira que fez o nome do povoado na floresta mais forte em nossa memória do que o nome do pequeno centro regional do embarque, Manicoré, na margem direita do caudaloso rio Madeira. Do cais de Manicoré, Bigode nos levou até o afluente Rio dos Marmelos, através do município onde caberiam os Países Baixos e ainda hoje tem menos população do que os bairros de uma metrópole.
Voamos de Porto Alegre a São Paulo, o editor Teófilo, a editora Fernanda, a filha de Fernanda, a namorada da filha e eu. Reunimo-nos em São Paulo à fotógrafa Irene Santos Custódio e, de lá, voamos para Manaus. De Manaus a Porto Velho, sobrevoamos em avião de porte menor, com as asas na parte de cima, e que nos pareceu saído de antigos filmes ambientados em tempos heroicos. A floresta estendida lá embaixo, de horizontes a horizontes. De Porto Velho a Manicoré, descemos o Madeira num pequeno navio com jeito de também pertencer a outro universo, ao nosso olhar de brasileiros vindos do distante sul. Aprendemos com os tripulantes e passageiros da região que o naviozinho é chamado de barco-recreio, lembro que o primeiro pôr do sol sobre as águas refletiu entre dourado e tom de âmbar, e o segundo poente foi oculto pela chuva torrencial a desabar em pancadas sobre águas e ondulações do rio com largura lago. À noite deitamos nas redes a bordo do barco-recreio, separadas por cortinas, mas deixadas abertas para dar passagem à aragem que desmanchava o calor úmido. Centena de pessoas juntas, algumas dormindo, outras puxando assuntos umas das outras, nos vermelhos, rosas, azuis, amarelos, laranjas e verdes das redes balançando devagar à luz de lamparinas, vozes baixas em respeito aos sonolentos.
Chegamos ao cais de Manicoré duas noites após a partida em Porto Velho. Descemos do barco à terra lamacenta equilibrando-nos sobre tábua comprida e balançante a servir de ponte. Dormimos num hotelzinho, procuramos pela manhã barco de menor calado para aventurarmo-nos em paranás e afluentes do Madeira. Entre os barqueiros, contratamos os serviços de Bigode, seu olhar direto, quietude, voz baixa, respostas com palavras mínimas e seguras, ganharam a confiança dos líderes da expedição, Teófilo e Fernanda.
Fomos a uma quitanda nos abastecer com mantimentos e, no retorno para o embarque, nos esperavam no cais duas parteiras de ascendência indígena. Informadas de que navegaríamos o Rio dos Marmelos, solicitaram permissão aos dois líderes para acompanhar-nos na expedição. O negro barqueiro explicou-nos o costume regional de conduzir rios acima e abaixo as voluntárias que cuidam da saúde de outras pessoas, conduzir sem lhes cobrar as passagens. “Os hospitais ficam longe demais, algum mal entra nas pessoas e os fracos não conseguem ir até lá, então o hospital é o barco que leva as rezadeiras até as pessoas.” Por certo, não foram essas as palavras na fala de Bigode. Tento chegar perto na tentativa de reproduzir o jeito, tenho a convicção de que “o hospital é o barco” esteve entre as palavras. O barco é feito hospital flutuante porque navega levando as rezadeiras, mulheres que receberam das antepassadas as tradições dos chás curativos e das rezas, fazem os partos e cuidam de feridas e febres porque têm o dom.
Bigode, as parteiras e a navegação aconteceram oito anos antes da conversa sob a ramagem florida no pátio da Santa Casa, em nossa cidade tão distante daquele mundo diverso, quando Fernanda lembrou as pessoas da Amazônia ao arquitetar diálogos para a futura vinda do antropólogo francês ao Brasil. Não lembro com a certeza que desejaria as palavras de Bigode, ouvidas há vinte e oito anos na expedição amazônica, mas tenho o sentimento de que chego próximo nas frases entre aspas, tal a força com que os acontecimentos instalaram-se em mim.
Recordo o brilho amarelo das florzinhas vibrando na ramagem que filtrava o sol, no pátio interno da Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre, as florzinhas acima de mim e de Fernanda: o acervo imenso de infinitesimais de tempo permanece. Permanecem e se transformam em renovados significados essas memórias que formam o que fui, sou, virei a ser. Faz poucos dias, Fernanda chamou de casa, alma e família às histórias que formam as pessoas. Intrigam-me os sentidos que ela tenha pensado para essas três velhas palavras.
Permanecem na lembrança as fitas azuis e rosas que uma das parteiras achava lindas amarradas no punho de pele ocre. Alarido e mergulho nas águas das arirambas coloridas nos desejando bom alvorecer e feliz manhã na entrada do Paraná dos Marmelos, fazendo-se presentes durante toda tarde no serpenteado curso do Rio dos Marmelos. A chegada, ao anoitecer, no lugarejo da menina com urgência de receber os cuidados de parteiras, as lembranças permanecem, e vão mudando: revisito-me ao revisitar a memória.
A negra e premiada senhora Irene Santos Custódio estava nos dias passados na Amazônia a converter acontecimentos em registros, no seu caso, na forma de fotografias. Ela buscava seringueiros e sequer tentáramos encontrá-los, tudo mudara desde o embarque das parteiras em Manicoré e no que menos pensávamos era pausar a navegação, desembarcar, adentrar trilhas na floresta. Nada de querer observar em terra borboletas azuis de brilho metálico, nem se agachar e curvar corpo e pescoço para espionar avantajadas saúvas cortadeiras, nem escutar de perto os macacos-prego que, do alto das árvores, saudavam a nós a bordo do barco, passantes velozes no rio, frustrados por não nos perdermos na floresta.
Circulara em Manicoré o pedido de socorro para o eminente parto prematuro, que se anunciava dramático, em Pau Queimado. A mensagem oral trazida de barco contava que a menina grávida se recusara a navegar em busca dos recursos de Manicoré. Sentira medo em afastar-se de seu povoado, talvez em delírio de febre. Recebedoras do pedido de ajuda, as parteiras agradeceram às forças invisíveis da floresta a sorte de encontrarem os branquelos sulistas e a fotógrafa negra que haviam contratado barco e as acolheram, mudaram de plano, pediram ao condutor para forçar o motor do batelão e navegar sem paradas até o novo destino, arriscando-se, os forasteiros, a perder o dinheiro investido em passagens aéreas e fluviais e na contratação do barqueiro. Aceitavam ficar talvez sem a recompensa das fotos de seringueiros em seu ofício de imergir na mata e extrair o látex. Bigode atendia ao pedido, exigia tudo do motor do batelão, velho motor, todavia mais forte e rápido que o barco que trouxera a notícia da mãe menina em via de parto.
Interrompo o passado e retorno ao presente para registrar que a filha de Fernanda veio espiar o que escrevo e me adverte que é “pouco amável referir-me a duas parteiras em vez de lhes chamar pelos nomes”. Concordo. Na verdade, preparava-me para mudar o texto inventando dois nomes. Confesso, não consigo lembrar os nomes das parteiras. Iaçandira? Indanhara? Era parecido com isso o nome da baixinha. E o nome da que adornava o punho com fitas azuis e rosas? “Iarandaia, a baixinha, lembro bem. A outra era Marione. Chamada de Mari, nome fácil de esquecer porque é comum. Lembro porque conversei bastante com elas depois da morte da menina”. Obrigado, Lara. Daqui por diante, escreverei Mari e Iarandaia. Mari era a conversadeira, certo?
Bigode, Iarandaia e Mari acharam graça da escolha feita pelos mosquitos. Ao entardecer, eles atacaram o sangue vindo de longe, poupavam os nativos. Mari não cogitou fechar a torneira das risadas aberta pela desventura dos forasteiros indignados com a eficácia sofrível dos repelentes aspergidos nas peles. Bigode e Iarandaia, respeitosos, apenas sorriam. O barqueiro nos salvou, tirou de uma caixa grande, que nos pareceu onde ele guardava tesouros, garrafa cheia de óleo amarelado. Explicou que era extraído da árvore andiroba, repelente natural que se mostrou bem mais eficaz que o nosso produto comprado em farmácia no Sul longínquo. Meu prezado senhor óleo amarelado, obrigado.
Ainda há pouco eu estava adiante em minha narrativa, quando Lara introduziu-se aqui na escrita para fazer necessária observação sobre os nomes. O texto já navegara a ida pelo Madeira e o Rio dos Marmelos, estava prestes a aportar próximo à aldeia para o parto que se introduzira em nossas vidas como efêmero destino. Deixarei de lado as anedotas da ida e passarei aos dois dias difíceis em Pau Queimado. Lembrança que adio escrever, a menina morreu.
Luzia fora exaurida pela febre, morreu nove horas após o parto no dia seguinte à nossa chegada. Enterrada na mesma tarde da gotinha de sangue saída pela narina e que antecedeu o fim. Era assim em muitas margens de rios e da mesma maneira continua, sem médico e sem exames clínicos, sem autópsia, sem registro em cartório.
A memória é fluxo e não se entra duas vezes neste rio sem dele sair-se diferente. Permanecem e vão mudando, a pequenina nascida prematura, que recebeu o nome da mãe de doze anos, o garoto pai com pouco mais idade que a falecida, a única avó restante, a comunidade ínfima de Pau Queimado, que celebrou com festa a nova vida e encaminhou para a terra e à floresta corpo e alma de Luzia mãe.
Dois dias em Pau Queimado, hospedados na casa de madeira e teto de palha, pertencente à avó restante e longe de ser anciã. Tempo suficiente para que Iarandaia e Mari cuidassem do surto de febres espalhadas pelo povoado e concluíssem que melhor seria permanecerem com os doentes. Pediram que levássemos conosco, a Manicoré, o senhor de ventre inchado para que, na cidadezinha, o embarcássemos para o hospital em Porto Velho.
Nem na ida, nem na volta, desembarcamos nas margens, não adentramos trilhas na floresta em busca de seringueiros.
Eu havia esquecido seu nome simples. Recordo o carinhoso abraço de despedida da risonha Mari, alegre como se a menina mãe não houvera morrido com a cabeça estremecendo sobre seu colo. Uma vida perdida, outra vida salva. Por que não irradiar sorrisos?
A jovem avó despediu-se afetuosa. Sua tranquila recepção à perda da filha nos surpreendeu, vindos do citadino e não habituados à resignação instantânea daqueles viventes não sei se absorvidos à onipresença da floresta, com seus ciclos diários de morte e renascimento, ou se abandonados à margem da medicina, das comunicações, da luz elétrica, das facilidades do ir e vir e dos aparatos e serviços das urbanidades ruidosas.
“Ju, era Ju o nome da jovem avó.” Obrigado por me recordar (de tempo em tempo, Lara vem espiar o que lanço na tela do computador). Eu estava em dúvida se era Ju, Jussara, o nome da mãe de Luzia e avó da segunda Luzia. E a indígena lactente que foi buscada nas imediações para garantir a sobrevivência da Luzia nenê, lembra seu nome? “Não, que pena. Nem lembro o nome do povo indígena da lactente. Pirarrã? Talvez fosse.”
Escrevi que foi difícil o breve período em Pau Queimado, não sei se isso é por completo verdadeiro. Foram dois dias de vivência em outro mundo. Se houve morte e doença, aconteceu junto esse contato com o estranho híbrido de serenidade e fatalismo diante do universo que avança feito maré alta e incontornável sobre o indivíduo. Deixar-se levar. Deixar-se, em desapego, afogar. Essa tranquila aceitação da dissolvência do indivíduo no Todo é o que agora compreendo que tenha marcado meu inconsciente acostumado ao cotidiano das ações e velocidades urbanas, que envolvem com a ilusão de que o ser de tantos atos e escolhas superará a correnteza do universo. Sofrido é voltar à morte distante de uma menina desconhecida quando escrevo diante do fim iminente dos longos e felizes dias vividos com Fernanda.
Há vinte anos, quando Fernanda lembrou acontecimentos de oito anos antes e das parteiras e rezadeiras da Amazônia para inusitado diálogo com o requinte teórico de Gilles Hyppolite, ela telefonou para professor universitário residente em Porto Velho, pedindo-lhe que procurasse pelo antigo barqueiro em Manicoré. Bigode poderia contatar as duas parteiras que houvéramos conhecido e transmitir-lhes e explicar o convite de Fernanda. Internet e telefones celulares eram novidades nos grandes centros urbanos. Sequer telefone ligado a uma tomada Bigode haveria de ter na distante Manicoré. O gentil professor Porfírio Villas Ribeiro, estudioso das lendas e mitos dos povos da floresta e editado em livro por Fernanda e Teófilo, deslocou-se de navio de Porto Velho a Manicoré em busca de Bigode. Dias depois telefonou para Fernanda. Soubera de atritos entre o barqueiro e madeireiros e jagunços recém-chegados, Bigode partira levando mulher e filhos para lugar incógnito e menos inseguro na vastidão. Das duas parteiras, Fernanda não conseguiu notícia mais exata que terem partido a prestar auxílios para os lados do rio Aripuanã. Contatos perdidos, Porfírio prontificou-se a convidar e trazer, em voo a Porto Alegre, outras duas parteiras para o encontro com Gilles.
Escrever recorda-me aqueles dias e gera meu cinema interior. Vejo Bigode forçando o motor do barco em atenção à urgência do senhor de ventre inchado aportar em Manicoré. O enfermo acompanhado pelo filho e ambos isolados e mudos na proa do barco, pouco à vontade em nossa companhia de forasteiros praticantes de idioma que também era o seu e, no entanto, parecia estrangeiro. Revejo Irene fotografando as margens com a teleobjetiva e troçando de si porque regressava “sem uma foto de seringueiros, em compensação, com a malária incubada, sinto os calafrios”, fingindo tremura nas mãos. Ouço Teófilo retrucando que estávamos a salvo graças ao repelente de andiroba oferecido por Bigode, “ao menos isso terminará bem nesta expedição furada”, satisfeito como se não fora de seu bolso que escoara o investimento sem prêmio. Lara, sua namorada e eu debruçados na amurada e dedicados à competição de quem avistava primeiro as silhuetas de jacarés entre galhadas e plantas aquáticas que emergiam do rio. Ganhei o jogo por vários pontos de vantagem, minhas adversárias deixavam-se distrair pelas manobras aéreas das garças e mergulhões pescadores. Fernanda presidia as relações diplomáticas no barco, ora, puxando conversa na proa com o senhor de ventre inchado e o filho, para deixá-los menos taciturnos e acanhados com os alienígenas, ora, indo à popa e ao motor perguntar a Bigode nomes e características das árvores gigantes perfiladas por horas ao longo das margens.
Bigode surpreendeu na chegada à noitinha em Manicoré, aceitou apenas metade do valor combinado para a contratação de seus serviços de barqueiro. “O senhor e a senhora largaram mão de entrar na floresta e do dinheiro, escolheram ajudar a gente daqui. Não cobrava nada se pudesse. Só não cobro nada porque preciso da metade, tenho meus filhos, três são pequenos.” Foi essa a única vez que presenciamos Bigode falar alto e rápido, sua estratégia para abafar as vozes de Teófilo e Fernanda, que tentaram sem sucesso pagar inteiro o combinado e só não insistiram porque a prioridade era a urgência de embarcar o senhor de ventre com aparência de estar prestes a romper-se. Chegáramos em cima da hora para a partida do barco-recreio, vindo de Manaus, rumo a Porto Velho. A última cena de Bigode em meu cinema é ele nos acenando do cais. “Dona Irene, por que só seringueiros? A senhora fotografou toda gente de Manicoré e Pau Queimado, a menina que deu a criança. Isso não serve para a sua arte? A cidade vai saber de nós.” Foi sua mensagem gritada do cais para o grupo que lhe acenava a bordo da nave que partia.
Irene pensou sobre as perguntas de Bigode durante os dias da navegação a Porto Velho. Ela ganhara notoriedade por seus livros fotográficos de resgate da memória dos negros na cidade de São Paulo, cenas da vida diária nas primeiras décadas do século 20. Interiores de casas despossuídas de conforto, mas ausência de imagens que replicassem os estereótipos sobre o período subsequente à escravidão de memória vivíssima nos existentes: imagens de não aviltados, não degradados. umanos: nos registros em tom sépiaHumanos, no registro em sépia da família que posou em torno da mesa coberta de docinhos e da criança aninhada na cadeira de nenê, primeiro aniversário. Esperançoso, o rapaz em frente à fábrica de tecidos, no dia inaugural de seu novo emprego. Senhor de cabelos brancos a vistoriar a pintura da fachada do panifício, enfim dono de seu próprio estabelecimento. As mocinhas em seus trajes de domingo, o homem orgulhoso em seu uniforme de marinheiro, a criança maior que estende a mão à menor para ajudá-la a galgar o degrau do bonde, que já parte do Largo de São Bento. Tão somente humanos em sua dignidade feliz de instantâneos registrados por fotógrafos anônimos e que foram pais, filhos, parentes, amigos dos retratados.
Não tínhamos em mãos os dois livros de Irene editados por Teófilo e Fernanda, mas recordávamos suas imagens e sobre elas conversamos enquanto subíamos o Madeira, instigados pela fala de Bigode gritada do cais de Manicoré.
Irene restaurara com modernas técnicas as fotos antigas e sua intenção, bem sucedida, fora trazer à visibilidade registros que demonstrassem a existência de um cotidiano, apesar de tudo, feliz, conquistado contra as injúrias vigentes no período de memória ancorada na escravidão. Singelos atos de resistência e de construir futuros. Heroicos na festa de primeiro aniversário do nenê no colo da avó. “1900, 1910, tantas décadas entre aquelas fotos e hoje, e parece tudo tão similar, necessário de lembrar. O simples ato de mostrar que pessoas negras são seres humanos parece ação de guerrilha contra o domínio da estupidez.” Reproduzir as palavras de Teófilo ditas a bordo é fácil: ainda que eu não as recordasse, bastaria transcrever as frases do prefácio que ele redigiu para o segundo livro de Irene.
Para o terceiro livro, Irene quisera migrar de São Paulo para a floresta longínqua e mal conhecida pela multidão das cidades. Viajar até os miscigenados de nativos e negros, que, desterrados da África e de cidades e latifúndios brasileiros, fizeram lar nos ermos da terra amazônica em que buscaram abrigo.
Por que apenas seringueiros? A pergunta do barqueiro entrara como clarão em Irene. Por que apenas o mítico personagem das florestas e não todos aqueles sem grife de mito e que ela fotografara pelo hábito de fotografar, sem intenção de livro? Por que não todos esses miscigenados não apenas de cores, mas por todos os jeitos de viver, com suas camisetas estampadas com nomes de bandas de rock? Prosaicos demais para o público leitor da artista paulistana e de seus editores brancos e sulistas? Despossuídos de aura? Habitantes de povoados sem o glamour do interior da floresta, meramente à beira? Por que não o rapaz de calça jeans e colar de sementes que vendia galinhas vivas no mercadinho ao ar livre em Manicoré? A pergunta de Bigode nos fizera enxergar o quanto trouxéramos de imagens preconcebidas em nossas mentes, malas, equipamentos e busca. O resultado da expedição fotográfica poderia estar salvo. Irene poderia selecionar as melhores fotos do estojo repleto de rolos de filmes.
Porém, seria ético publicar retratos sem o consentimento dos fotografados? Desrespeitoso, hostil à sua vida e memória, multiplicar em capas de livro a face em close da menina mãe morta sobre o colo da cuidadora de seu último dia? Ao contrário, um dever mostrar a imagem a quantos fosse possível? Irene batera a foto movida pelo automatismo de a tudo clicar e no ato se advertira de que o gesto fora talvez errado. Algo maior, que ela manifestava dificuldade de expressar, solicitara que melhor seria quietude igual à da menina morta, que se abstivesse de ações, apenas contemplasse o rosto. A foto, no entanto, estava nos filmes no interior do estojo, Irene a revelaria no escuro de seu laboratório em São Paulo. A pergunta plantada por Bigode inquietou o olhar da fotógrafa sobre os registros, principalmente esse, o rosto final da menina Luzia mãe. Jantamos e adormecemos a bordo sem respostas para o dilema de Irene. Desembarcamos em Porto Velho carregando a dúvida e o senhor de ventre inchado e seu filho, que entregamos ao hospital. Com a dúvida, pernoitamos em Porto Velho.
E com a dúvida, descemos do avião em São Paulo. Meia hora depois, a dúvida nos foi tirada. Pegamos dois táxis, num, foram Irene, Fernanda e Teófilo, no segundo, eu, Lara e a namorada. Seguimos para a casa de Irene, nas proximidades da Avenida da Consolação. Sob o efeito dos acontecimentos dos últimos dias, descuidamo-nos da cidade gigantesca. Malas guardadas no bagageiro, Irene sentou-se no banco da frente segurando a teleobjetiva à altura da janela, o estojo dos filmes repousado em seu colo. Mal saídos do aeroporto de Congonhas, dois assaltantes motociclistas ladearam o táxi no semáforo fechado. O da esquerda encostou o cano da pistola no vidro do motorista. O outro, na têmpora de Irene, que não erguera o vidro. Levou-lhe teleobjetiva e estojo. “Pronto, acabou a dúvida, não tem livro. O lugar da mãe menina é em nossa memória. Vocês lembram a música do Gil? Se eu quiser falar com Deus, tenho que dizer adeus, dar as costas, caminhar decidido pela estrada que ao findar vai dar em nada, nada, nada, nada do que eu esperava encontrar.” Assim Irene definiu o resultado da viagem, quando nós seis sossegamos em sua casa, aconchegados à mesa do café, dos pães.
Linhas de fugas e encontros
Todos esses acontecimentos que nos últimos dias recordo de maneira extensa porque sobre eles escrevo, esses acontecimentos foram lembrados e referidos na rapidez de dois minutos ou três por mim e Fernanda, na tarde acontecida faz vinte anos, sentados sob a ramagem florida, no pátio interno da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Em apenas dois ou três minutos porque nossa atenção estava dirigida ao projeto de trazer Gilles ao Brasil e não para o passado, como se encontra agora a minha ao querer guardar na escrita a vida com Fernanda.
E se o antropólogo dialogasse com parteiras e rezadeiras da Amazônia no lançamento da edição brasileira de seu livro? Fernanda anteviu a plateia intrigada diante do inusitado da complexidade do francês em diálogo com a simplicidade das parteiras. Vislumbrou que o complexo se mostraria simples, o simples se revelaria complexo e o encontro entre os hemisférios norte e sul sondaria promessas de humanidade remota e não impossível.
Muitas casas, uma só casa. Fernanda não havia formulado sua recente visão sobre a tríade de direitos – casa, alma, família, mas se referira vez ou outra às almas e famílias associadas a casas. Era-nos leitura recente As Três Ecologias, de Félix Guattari. Estávamos apaixonados, Teófilo, Fernanda, Lara, a namorada de Lara, eu, pelas ecosofias, saberes amorosos sobre as casas. Ao traduzir do francês o livro de Gilles Hyppolite, Fernanda desejou vê-lo no Brasil conversando sobre a invenção hospitalar da humanidade e ecosofias inspiradas por Guattari.
No dia da ideia sobre as parteiras, Fernanda e eu tomáramos café pela manhã na editora e decidíramos visitar hospital semelhante a muitos, com alas de pobres que não podiam pagar pela boa medicina, amontoados em corredores de espera. À tarde, visitáramos a Santa Casa, hospital em sua maior parte dedicado aos pobres. Lá, o diferente, o hospital elevado, reinvenção hospitalar movida por tantos esforços convergentes. Descansando no pátio interno, Fernanda gestou a ideia sobre Gilles e as rezadeiras que se fazem parteiras.
A visão de Fernanda se realizou. No lançamento da edição brasileira de Nascimento e morte, a invenção hospitalar da humanidade, a felicidade de vermos a plateia surpresa no auditório da Santa Casa, diante do autor francês em conversa com duas parteiras pouco letradas e vindas de mundo em quilometragem mais próximo que a França e ao mesmo tempo muito mais distante. Gilles palestrou sobre inspirações encontradas em Deleuze. Porfírio Villas Ribeiro foi traduzindo o francês para o entendimento da plateia e das duas cuidadoras de pessoas da floresta. Eldete Conceição e Jandira Conceição contaram histórias de vidas ribeirinhas. As irmãs parteiras, convidadas por Porfírio, costuraram-se com narrativas aos rizomas conceituais de Hyppolite. Eldete e Jandira pensaram ter pouco entendido as linhas de encontros e fugas filosofadas pelo palestrante, descobriram, no diálogo, compreender muito.
Gilles designou os encontros hospitalares com a doença e a possível iminência do fim como oportunidades para a vida. A pessoa encapsulada em insensibilidade tem a chance de romper sua bolha opaca, ligar-se ao prodigioso oferecido pelos sutis acontecimentos que envolvem as existências. O enfermo, seus familiares, o enfermeiro, todos têm a chance de elevarem-se à compreensão de que, no introduzir da agulha na veia, mais do que a perícia, a doação de carinho pode ser o abrir da porta que dá passagem para universo que se desoculta a quem se dispõe a ver, ouvir, sentir.
Há uma escadaria em espiral que se move girando não só para cima e para baixo, desloca-se para os lados, ainda que não se saiba ao certo onde ficam adiante, atrás, acima, abaixo, dentro, aqui ou além. Foi com essa figura que Gilles representou a pessoa diante de sua memória, de seu futuro e de ser e estar na rede do humano, e corrigiu: escadaria, não, escadarias, bilhões delas. Girando, por vezes, destrutivas de si e do outro. Desmoronando-se. Refazendo-se.
O hospital é a lupa que magnifica acontecimentos mínimos, compreendidos enfim como os mais importantes. Alguém de súbito vê seu pai de outro modo, para além da bolha formada pelos ressentimentos da história de vida. Vê seu pai de maneira variante porque uma linha de encontro faz seu olhar captar o olhar do pai no infinitesimal de tempo em que o olhar do pai encontra o olhar do enfermeiro doador de carinho, e o pai enfim se torna aquele escondido que nunca deixou de ser criança e agradece pelo amparo. Linhas de fuga para conseguir deixar de ser. Linhas de encontros para vir a ser.
“Quando se é acordado num certo momento, a gente é acordado por alguém.” Gilles Hyppolite recordou a sentença de Deleuze para lembrar que esse ver que vê visões necessita dos outros, tal como o filho ao ver o olhar do pai-criança em linha de encontro com o olhar do enfermeiro. O ouvir que ouve audições. O sentir que sente sentidos e sentimentos. Hyppolite ligou-se a Deleuze para ver, ouvir, sentir o hospital como lugar de intensidades amplificadas, encruzilhadas, redemoinhos de visões, escutas, sentidos, sentimentos.
Ele também se ligou a Guattari, para chamar o hospital de casa. Lar que precisa ser inventado pelo saber amoroso. Ecosofia que não dispensa o saber crítico da história hospitalar como medicina reduzida ao pior comércio, ânsia de lucro, abandono. Mas crítica que não obstrui o desejo por conceber além e sonhar com a invenção pressentida no ver, ouvir e sentir intensificados por linhas de fugas e de encontros na casa de nascimentos, doenças, curas, expectativas, mortes, despertares.
A humanidade se reinventa, agencia-se para o aconchego do sublime quando pensa nas cores das paredes. Quais as melhores para um berçário? Azuis e rosas como as fitas que a parteira Mari levava no pulso? Amarelas?
Estampadas com girafinhas? As girafinhas são lembrança recente minha. Estavam na creche que visitei com Fernanda poucos dias antes da parada cardiorrespiratória.
Branco é bonito. Porém, brancas, todas as paredes? Por quê? Perguntou Gilles Hyppolite, há vinte anos, ao adentrar pela psicologia das sensações térmicas dos ambientes e suas relações com as linhas de encontros entre as pessoas dedicadas a cuidados e gentilezas.
Amarelas. Lembrei agora da madrugada há sete anos, quando permaneci ao lado de minha mãe na morgue hospitalar. Ela morrera naquela noite, acompanhei as enfermeiras que a conduziram à morgue e ali fiquei depois da partida das duas jovens, segurando a mão que segurou tantas vezes a minha. Amarelas, havia um jarro com flores de plástico sobre pequena cômoda, ao lado da cama e do corpo. Por que deixar jarro de flores de plástico na companhia de cadáveres a se revezarem no recinto e à espera de eventual filho que ali ficasse a segurar a mão de corpo que recém chegara? Por que de plástico? Para não decepar plantas vivas de suas belas cabeças floridas? Bastaria uma só morte de cada vez a ocupar o recinto? Não sei. Sei que me senti agradecido por ter a companhia de flores com a cor preferida de minha mãe, enquanto ali permaneci recebido pelas silenciosas presenças da cômoda, do jarro, do corpo, das lembranças. Acariciando-lhe a mão, lembrei a palestra de Gilles acontecida há tanto tempo. Fútil julgar se bom ou duvidoso seria o senso estético do funcionário que colocara flores de plástico no jarro sobre a cômoda. Agradeci, a esse desconhecido, por sua intenção acolhedora. Era possível que ele nunca ouvira sobre ecosofia, o que em nada o impedia de praticá-la com sua ação amorosa. Guattari criara palavra bonita. Hyppolite fizera bem em escrever livro sobre a invenção hospitalar da humanidade. Felizes, os engenhos de Fernanda em traduzir o livro, agenciar a vinda do autor ao Brasil, convidar as rezadeiras ao diálogo.
Estou na plateia ouvindo Gilles, Eldete, Jandira, Porfírio. Estou sentado na primeira fila com Fernanda, Teófilo, Lara, a namorada de Lara e minha mãe Terezinha. Gilles está dizendo que jardins internos hospitalares são lugares de pausa para reagrupar forças e pensamentos de futuro. Jandira argumenta que na Amazônia é o contrário, o hospital é a pausa dentro da grande floresta. O hospital pode ser uma só pessoa, alguém sem formação médica, mas de coração hospitalar. Itinerante, a pessoa/hospital é o jardim interior a fazer-se presença na vastidão onde os esquecidos pelo mundo resistem.
Porfírio faz-se ponte, traduz Jandira para Gilles Hyppolite e a pergunta dele de volta para a cuidadora: se a pausa é o pátio interno do ser, é somente a pausa que se instala como exceção no torvelinho dos dias, ou o torvelinho se reapresenta no pátio interno? A agitação da mente se reinstala dentro da quietude? O que é a pausa?
Eldete responde por Jandira: no lar e no abandono que a floresta é, o descanso está na navegação até os povoados, onde enfermos esperam. Tempo que escoa junto com o rio para pensar quem é essa pessoa a abandonar a própria vida para cuidar de desconhecidos.
Gilles observa que Jandira antes igualou a pessoa ao hospital e que esse hospital corporificado na pessoa itinerante e frágil é a pausa na vastidão do isolamento, enquanto a irmã Eldete designou a pausa como a própria navegação. Afirmações divergentes ou as duas páginas que formam uma só folha a convidar à escrita do texto pelo diálogo? Tempo e espaço fluindo juntos em pensamentos, dúvidas, sentimentos.
Escuto Gilles, Eldete, Jandira e a tradução de Porfírio. A vida toda se reapresenta dentro dos movimentos da pausa, intervalo para ausentar-se do quarto, permanecer entre plantas, flores e fazer passado, presente e futuro tentarem decifrar-se mutuamente. Filha, filho, pai, mãe, irmão, amigo, protetor, o acompanhante que buscou descanso no refúgio do pátio interno pensa no enfermo que deixou no quarto, ambos pensam. Eles têm esperança no que a passagem dos dias dirá, duvidam, sondam no fundo de si se deixaram de crer em orações. A pausa pode se converter no vórtice tormentoso, mas eis que surge, para quem está no quarto e para quem está no pátio, o recordar da linha de encontro de olhares que aconteceu ontem, e agora, para além das racionalizações, acontece uma certeza momentânea sobre a presença do transcendente, pausa que silencia pensamentos inquietos.
Eldete encanta-se pelas espacialidades da casa de Hyppolite, seus pátios internos, jardins, o lá e o aqui de duas pessoas que pensam uma na outra e no somatório de pequenos problemas da existência em comum que se dissolvem diante da vida compreendida de repente num estalo, na quietude silenciadora de aflições.
Tempo da pausa, espaço da pausa, Jandira compreende a geografia hospitalar de Hyppolite e a expande. Pergunta se, para além do pátio interno hospitalar, existem possibilidades expandidas para a pausa. Em resposta, Hyppolite propõe-lhe perguntas. Doença e luta para superar a natureza efêmera do corpo, nascimento e morte no hospital são artificializações da vida, da vida como ela era antigamente? Isso é fuga dos extremos da existência antes vividos nas casas? É chance para novas linhas de fugas e de encontros, reinvenção da humanidade? Medicina que amplia a noção de família em direção à humanidade hospitalar? Jandira compreende que o antropólogo responde perguntas com indagações e apropria-se de seu método para impulsionar pensamentos a migrarem em busca de conceitos inéditos. Em resposta às indagações de Hyppolite, Jandira pergunta a ele se
Nelson Rego é autor dos livros A Natureza intensa (2016), que apresenta quatro contos interligados, Noite-égua (2015), romance, Daimon junto à porta (2011), vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura para melhor livro de contos, e Tão grande quasenada (2004), livro de biografias ficcionais. Autor de nanocontos, aforismos e outros textos sintéticos, publicados em coluna semanal no Jornal Sul21, de 2014 a 2016. Foi colaborador da revista literária Sepé, de 2020 a 2024. É também autor de livros acadêmicos e professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Website: http://www.nelsonrego.art.br