POESIA

Poemas de Gabriele Rosa

Imagem: "The treatment of fractures", W. B. Saunders, 1901.

Poemas de As avós não morrem nas canções de ninar
(Coleção Plaquetes, Ed. Primata, 2024)

caimento, volume: pressão

colado entre os seios, 5h25
dormem os carcinomas?
Mercúrio atrasado
dentes bambeados    indefesos    palato frouxo
todas as formas de devorar mundo
atracadas no teto
trinta e sete copinhos na lixeira, 7h
dança das cadeiras    dez por oito    normal?
poros dilatados, oitenta decibéis
perda bilateral parcial
: a concha cinzenta ofertada por Ovídio cantou feroz
no colo, Lemebel e seu rouco riso louco
de susto em susto
Erê ensina brincar doses quimioterápicas.

*

nodulares

1.

nodo norte traz sorte
nódulo na mama direita
morte?

2.

câncer na casa três
brinca com o lote da fortuna
vovó teima e esconde o peito, queima

3.

gânglio à vista
fogo no sol, água no ascendente
câncer dá em bicho, gente

4.

crescimento anormal do número de células
águas antigas, corpo trincado
sorte que a voz não morre

5.

cintilografia óssea
no café da manhã
neoplasia maligna tira o apetite

6.

roseira com espinhos
de arrepiar
as avós não morrem nas canções de ninar

7.

criança com farpa no dedo
chora de soluçar
o câncer no peito da avó cresce devagarinho

*

os doze trabalhos

todas às quartas dedicadas
revezamento estratégico
: filhas, netas, bisnetas
não se engane
falo de vísceras
cuida?
repito
como um mantra
: as avós não morrem nas canções de ninar
só as crianças correm perigos

§

Poemas de livro em processo (inédito)

MONÓCULOS DE ESTILHAÇOS OU O LUGAR DOS CORPOS VERTIGINOSOS

As roupas covardes no varal beliscam minhas têmporas. Nunca comprei espelhos. Eu estava desnuda e as malas prontas e o filme de trás para frente deslizava minha ruína também nua e com um plano sequência especular.

Comprei uma moringa feita de barro, enfeitada de porcelana lilás, para ter água fresca sempre ao alcance das mãos, há um ano ela me observa com sede.

Tive muitos amores – disse – mas o mais lindo foi meu amor pelas ampulhetas.

*

goela abaixo

esqueci de cuspir. acordei sem vista para o mar. concreta, deserta, transtornada. largaram meu nome na lavanderia. sirius, vega, capella, pólux, castor, polaris, algol. lembra? cabeça feita de serpentes, matéria oca. gasosa. berrar, tremer, grunhir, correr. ah! correr para lugar nenhum é a melhor parte – eles disseram. contagiante. desaprendi a desgostar de gente. os usuários caminham, caminham, caminham. tudo é branco, cinza, verde-ruína e destino. minha vesícula está azeda e não sei nadar. eles desejam me abrir, rasgar minha carne anoitecida. não gostam da noite. um, dois, três, quatro. meu coração escorreu por entre as coxas no verão de 1982. uma enseada vermelho-sujo-natimorto. vez ou outra meus seios lacrimejam. dormir dói. quando eles apagam as luzes tenho medo de ficar presa do lado de fora da minha cabeça. despalavrada: louca: louuuuuucaaaaaa. quarto lagarta, leito-único. onze, doze, quinze, dezoito. uma ficha, três minutos. alô, mãe? sirene alta, vozes embaçadas, telefone fora do gancho, pendurado. cronômetro e voltímetro calibrados. 80 volts. gritos, grilos, grunhidos. 150 volts. silêncio. quem me criou? vinte e cinco, trinta e dois, quarenta! te peguei, tá contigo.

*

hora do almoço

os azulejos cordiais retalham minha traqueia. nunca inundei vísceras. eu ocultava pequenos pavores na segunda gaveta do armário da cozinha e as ondas quebrando na rebentação e o estampido acariciava minha ruína também oculta e com um destino quase inofensivo.

aprendi bordado quando pequena observando minha avó tecer palavras que engolia sozinha solar saudade era comum esbarrar com a voz dela nos panos de prato.

tive muitas chaves – disse – mas raramente mulheres saem para comprar cigarros.

Gabriele Rosa é dramaturgista, historiadora e poeta. Publicou, entre outros, os livros afetos postiços (Ofícios Terrestres, 2023) e Dias medidos em xícaras de café (Ed. Urutau, 2023). Assinou o dramaturgismo da peça Memórias de uma Manicure (BQ Teatro, 2023 – Projeto contemplado no Edital Eletrobrás 2021). Suas publicações mais recentes são as plaquetes As avós não morrem nas canções de ninar e Manejo (Ed. Primata, 2024). 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *