Traduzido por Léo Tavares
Não conhecia a poesia de Edith Sitwell antes de ver sua imagem e ouvir sua voz em filme. Por acaso, assistindo a entrevistas antigas com personalidades marcantes do século 20, me deparei com seu rosto na capa de um vídeo no Youtube. Era a entrevista que ela deu ao ex-político, diplomata e então apresentador John Freeman. O programa se chamava Face a Face, transmitido pela BBC entre 1959 e 1962.
Atraído pela sua figura singular, quase cartunesca, mas também pela agudeza da sua fala, que oferecia vislumbres da sua vida e trabalho, comecei a descobrir a sua poesia.
Difícil dissociar seus versos, de início, daquela imagem de uma senhora vestindo roupas vitorianas na segunda metade do século 20. Em sua longa trajetória, sua dicção poética foi variada, perpassando abstrações modernistas, adotando ritmos musicais modernos, como o jazz, e também imergindo no simbolismo. Sua poesia tardia é conhecida por uma preocupação humanista profunda, e parece ir gradativamente ganhando densidade emocional, sem jamais abandonar as preocupações técnicas.
Vinda de uma família com vários escritores, destacou-se junto com seus irmãos Osbert e Sacheverell na cena literária londrina, especialmente durante a intensa década de 1920. Sua casa era um lugar de encontro de artistas e poetas, e Edith ajudou a divulgar muitos nomes que depois se tornaram definitivos, como Dylan Thomas.
Mulher independente, argumentativa e sem medo de compartilhar uma visão de mundo dissonante, Edith foi vista como excêntrica mesmo em seu tempo convulsivo. Nunca se casou, mas viveu romances intensos e foi apaixonada por um amigo homossexual, o pintor russo Pavel Tchelitchew. Tinha pelos próprios pais um ressentimento incontornável. Costumava relatar histórias sobre o distanciamento deles e seu desprezo para com ela, e se recusou a comparecer ao funeral de sua mãe.
Seu relacionamento com a imprensa e a crítica sempre foi tenso, e o tratamento que ela recebeu em seus anos de atividade literária e aparições públicas foi, para dizer o mínimo, cruel. Era comum que sua fisionomia extraordinária e seu comportamento singular fossem alvo de caricaturas e piadas. Um crítico chegou a escrever que ela era “tão feia quanto a poesia modernista.”
Em 1953, Edith estabeleceu uma amizade com uma celebridade improvável: Marilyn Monroe. A poeta tinha sido convidada pela revista Life a entrevistar a atriz e a compor um perfil da mesma, e a imprensa da época esperava que Edith, conhecida por sua mordacidade e comentários implacáveis, fosse atacar Marilyn de alguma maneira. Isso jamais aconteceu. Elas conversavam sobre Freud, Arthur Miller, Dylan Thomas, Rudolf Steiner e a antroposofia, e também sobre suas visões sobre a poesia e o cinema. Edith elogiou publicamente a inteligência de Marilyn em diversas ocasiões, destacando sua “dignidade natural” e a força interior que lhe fazia manter uma luz própria em meio à tanta escuridão, observando, evidentemente, a maneira como Marilyn havia sido explorada em Hollywood.
A poeta morreu em 1964, em Londres, aos 77 anos, dois anos depois da morte trágica de Marilyn.
Para traduzi-la, encarei um desafio e me decidi por tomar de empréstimo a postura de Edith, que, se por um lado prezava pelo trabalho de artesania minuciosa, também era uma grande entusiasta da liberdade criativa e da experimentação. Não sou um tradutor profissional, longe disso. Mas gostaria que os versos de Edith Sitwell, em português, retivessem o maior lastro possível da luminosidade original. Tentei preservar ao máximo a imageticidade impressionista da sua captura da paisagem, ao mesmo tempo em que quis alcançar algo próximo do ritmo que pontua essas formas. Me permiti pequenas variações de sentido para alcançar as rimas, especialmente no poema O Gato, buscando, para os três poemas, manter o significado latente num leque de possibilidades de apreensão.
O que me motivou a traduzir Edith Sitwell, primeiramente, foi meu envolvimento pessoal com sua escrita e com sua persona. Em segundo lugar, a escassez de traduções do seu trabalho para a nossa língua. Além disso, compartilho com ela o dia do aniversário.
Vinda de um período de vanguarda que sempre me fascinou, percebo em Edith a manifestação irrestrita da criatividade quando irrefreada e posta a serviço do humanismo. É uma poeta que foi parte integral do que chamamos de espírito de um tempo, e desse tempo paradoxalmente deslocada, de algum modo, como são os contemporâneos. A meu ver, é o tipo de poeta que abraçou o híbrido entre linguagens e artes, esgarçando fronteiras com tamanha destreza, que só pode ser situada no entre. Um exemplo disso é seu primeiro livro, Façade, de 1922, feito para ser musicado pelo compositor William Walton, e apresentado em teatro. Ela recitava os poemas performaticamente, através de um buraco numa boca pintada numa cortina, utilizando um megafone.
Preservar a sagacidade e a forma primorosa dos seus versos originais, portanto, é uma tarefa fracassada desde o início, e por isso já vou me desculpando, fazendo questão de lembrar, uma segunda vez, que não sou de fato um tradutor profissional. O primeiro poema que escolhi para trazer à Especiaria é intitulado Déjeuner Sur L’Herbe, e foi publicado em uma antologia em 1918. O segundo poema, chamado The Cat, aparece em Façade, seu livro de estreia, de 1922. Por fim, o poema Song: We are the darkness in the heat of the day foi publicado em Street Songs, de 1942, e mais tarde foi musicado pelo compositor Benjamin Britten e apresentado no programa The Heart of the Matter, parte do Festival de Aldeburgh, em 1956.
Déjeuner Sur L’Herbe
Maçãs verdes dançando em banho de verão —
Ondas de sentido e diversão —
Uma rede de luzes que oscilam enquanto costuram
A luz do sol nas folhas que murmuram
O som meio atordoado dos pés
E das carruagens que no calor ondulam
As sombrinhas, como se da luz fossem projeções,
Lançam sombras que giram em borrões
Como pássaros brilhantes
Por semblantes risonhos e cabelos esvoaçantes
O verde tremula e uma escuridão conjura
Para que nela escondida eu perceba o quanto
Vibrante, nessa assombrosa urdidura
Minha alma vai se encorpando ao brilhoso manto
Ai, penas repentinas de brilho cintilante!
O dardo veloz do sol se passa
Pela canção de pássaro que a folhagem escura transpassa
E a própria vida não é mais que um reflexo na vidraça.
§
Green apples dancing in a wash of sun—
Ripples of sense and fun—
A net of light that wavers as it weaves
The sunlight on the chattering leaves;
The half-dazed sound of feet,
And carriages that ripple in the heat.
The parasols like shadows of the sun
Cast wavering shades that run
Across the laughing faces and across
Hair with a bird-bright gloss.
The swinging greenery casts shadows dark,
Hides me that I may mark
How, buzzing in this dazzling mesh, my soul
Seems hardening it to flesh, and one bright whole.
O sudden feathers have a flashing sheen!
The sun’s swift javelin
The bird-songs seem, that through the dark leaves pass;
And life itself is but a flashing glass.
§
Canção: Nós somos a escuridão no calor do dia
Nós somos a escuridão no calor do dia,
As flores sem raiz no ar, a frieza: nós somos a água
Sobre as folhas diante da Morte, nosso sol,
E o seu vasto calor que nos inebria… A Filha da Beleza
O coração da rosa e nós somos um.
Nós somos as crianças do verão, a respiração do anoitecer, os dias
Em que tudo é passível de esperança, — nós somos o sorriso que escoa
de quem perdemos, visto por entre as folhagens do verão — Aquele sol e sua luz falsa que caçoa.
§
We are the darkness in the heat of the day,
The rootless flowers in the air, the coolness: we are the water
Lying upon the leaves before Death, our sun,
And its vast heat has drunken us… Beauty’s daughter
The heart of the rose and we are one.
We are the summer’s children, the breath of evening, the days
When all may be hoped for, — we are the unreturning
Smile of the lost one, seen through the summer leaves — That sun and its false light scorning.
§
O gato
Com seu gentil gorro aveludado
Carinhosamente esquentando
O meu colo cansado
E meu choro o molhando.
O fogo negro e feroz
Esmorece, e é como o som atroz
Do carvão em brasa
Que o miado do gato extravasa.
Nas lenhas descarnadas
Umas folhas azuis se dilaceram
Umas folhas de azul manchadas
De manhãs e noites que foram.
De gorro apertado, tão bonitinho
Sobre a minha manta deitado
O fogo já foi, ei, bobinho,
Um castelo cercado;
E a cada manhã eu os ergo
Esses castelos altivos
E a cada noite, eu os perco
Para esses galhos despidos.
E nada tem prosseguimento,
Querido inocente, para além do meu sofrimento
Noite e manhã, tal gravetos, queimam forte
E não há ninguém que se importe.
§
His kind velvet bonnet
Warmly lies upon
My weary lap, and on it
My tears run.
The black and furry fire
Sinks low, and like the dire
Sound of charring coal, the black
Cat’s whirring back.
On the bare bough
A few blue threadbare leaves,
A few blue plaided leaves grow
Like mornings and like eves.
Scotch bonnet, bonny,
Lying on my gown,
The fire was once, hey nonny,
A battlemented town;
And every morn I build
Those steep castles there,
And every night they’re ruined
Like the boughs bare.
And nothing doth remain,
Kind bonny, but my pain,
And night and morn, like boughs they’re bare,
With nobody to care.
Edith Sitwell nasceu em 7 de setembro de 1887, em Yorkshire, Inglaterra. Figura excêntrica e controversa de sua época, escreveu peças de teatro, ficção, não ficção e poesia. Suas coletâneas de versos incluem The Wooden Pegasus (B. Blackwell, 1920), Five Variations on a Theme (Duckworth, 1933) e Green Song and Other Poems (Macmillan & Co., 1944). Sitwell faleceu em Londres, em 9 de dezembro de 1964.
