POESIA

Poemas de Betine Daniel

Imagem: Aoki Shukuya, 1772.

Da respiração

I.
Pensar um pulmão
e então nascê-lo
um pulmão-oriente
da primeira hora do dia
o exercício atmosférico
da infi ltração do mundo
que se codifica, maximiza
se espalha, instilada
nos caminhos do sangue
o pulmão cheio do ar
o coração cheio do sangue
o pensamento cheio – biológico
o pensamento-oriente da manhã
o rapaz orientado – pela vastidão
da vida – pensar um pulmão
aninhar de palavras – como
um dia enovelou-se de sangue
misturado ao ar.

II.
Para os assuntos duros
minha mãe respira
como lhe faltasse
o primeiro ar –
a pesada tarefa
no corpo da matéria
espessa: lograr
realidades
que da carne
não se afastam.
Os assuntos rochosos
minha mãe corta-os
rompe em pequenos pedaços –
aplainados, ama-os.

§

Babytronik
(para meu sobrinho, fones de ouvido)

Nasceu fazendo bem bem
um loop analógico
como quem já nomeia as ondas
que conversam pelo espaço.

No chão, inventa trilhas sonoras
com saliva de nomear entes
todos, bola
e bateria cardíaca:
um krautrock de colo
e nascer de dentes —
faz levitar a tarde.

Pela janela, cores tomam a estrada:
azul elétrico, vermelho retrô
e o balonete salmão
quase dirigível
entre a mulher flutuante
em câmera lenta e um sofá —
respira luz.

A criança é cidade sonâmbula
em faróis e véus de garoa
cá, nas fraldas e glissandos
o bebê move as mãos
e, num estalar de dedos
cura o inaceitável.

Efeito especial.
Cada som
seu novo manifesto.
Un petit éclat
na língua do Stereolab
editando a rarefação —
bem bem bem —
baby mantra psicodélico
olhos de sintetizador.

§

Mar Montante

Na física das marés
existe o fenômeno da onda boreal:
um mar que sobe o leito do rio
inverte a corrente
desafi a o curso.

Na alquimia
o montante é a água em ato:
não a que escoa
mas a que se ergue
e transforma o que toca.

Mar montante —
água que recusa ser apenas espelho
boca do rio abrindo-se ao contrário
corpo salgado que, ao invés de se dissolver
ascende.

Liberdade em estado líquido
insubmisso.
Dobra da fluidez em potência.
Sal que sangra para cima.
Golpe de pulsação que nega a foz.

Eu contra a queda
corrompendo o mapa
rasgando o leito
traçando a linha
do ruído.

§

Cruzeiro

Sustenta a abertura
para dentro da superfície
acima da clareira
crescendo abaixo do céu
seu ventre arfa
com mãos marceneiras —
uma mulher xilografada

Betine Daniel (1981) é poeta, formada em Letras e servidora pública. Nasceu e vive no Rio de Janeiro. Publicou os livros Uma casa perto de um vulcão (Patuá, 2018), Ainda ancora o infinito (Moinhos, 2019), corpo-esconderijo (Libertinagem, 2024) e está lançando Harpia harpyja (Caravana, 2025). É também autora da plaquete Irmanações (ou) Poéticas Fractais (Primata, 2024), escrita em parceria com seu irmão. Já teve poemas publicados em antologias e revistas impressas e digitais.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *