Traduzido por Thomaz Albornoz Neves
Esperando Perec
O inconsciente é um manicômio com vista para o mar
Cada peixe fora d’água veste uma camisa de força
3
Vi o Papa acordando
de um pesadelo horrível
Deus lhe disse
que lia Rimbaud
Era Ano Novo
O Papa dormia abraçado
ao seu Cristo de pelúcia
4
Eu vi a morte arrastando
o caixão de Vallejo
O caixão estava vazio
mas pesava uma eternidade
Era novembro
Os vermes gargarejavam
com as cinzas de Deus
5
Eu vi Deus beijando a morte
em um café de Paris
com uma barba centenária
e um guarda-chuva
para espantar a solidão
Era verão
Sua sombra se abanava
com a orelha de Van Gogh
7
Vi a morte chorando no enterro de Cervantes
As pessoas gritavam: “Companheiro Miguel
“Presente”, diziam os vermes
enquanto o desciam a sua última morada
A poucos metros dali, cremavam o cadáver de Deus
8
Vi Pessoa matando três de seus heterônimos
Vi quando os levou nos ombros até o rio de sua aldeia
Vi quando os jogou um a um de uma ponte imaginária
Vi secar esse rio até as últimas lágrimas
e tudo o que encontraram foi o corpo de Cristo
9
Vi Marilyn Monroe amamentando sua sombra
Tinha seios tristes
e usava camisa de força para dormir
Tatuou as costas com algo revelador
Também Deus foi meu amante
23
Vi Kafka no quarto de brinquedos
Conduzia um trem infinito
sobre trilhos que pareciam enguias
Debaixo da cama, outra criança desmontava
uma lagarta fluorescente
A lagarta tinha o rosto de Kafka
Também os móveis, os relógios
as paredes tinham seu rosto
As as aranhas entediadas em suas teias
os brinquedos no quarto
Só quem não tinha o rosto de Kafka
era o próprio Kafka, cujo rosto
parecia uma página em branco
§
Esperando a Perec
El inconsciente es un manicomio con vista al mar
Cada pez que sale del agua trae camisa de fuerza
3
Vi al Papa despertando
de una horrible pesadilla
Dios le había contado
que leía a Rimbaud
Era año nuevo
El Papa dormía abrazado
a su Cristo de peluche
4
Vi a la muerte arrastrando
el ataúd de Vallejo
El ataúd estaba vacío
pero pesaba una eternidad
Era noviembre
Los gusanos hacían gárgaras
con las cenizas de Dios
5
Vi a Dios besando a la muerte
en un café de París
Llevaba una barba de siglos
y un paraguas
para espantar la soledad
Era verano
Su sombra se echaba viento
con la oreja de van Gogh
7
Vi a la muerte llorar en el entierro de Cervantes
La gente gritaba: “Compañero Miguel”
“Presente”, decían los gusanos
mientras lo bajaban a su última morada
A pocos metros de ahí cremaban el cadáver de Dios
8
Vi a Pessoa asesinar a tres de sus heterónimos
Vi llevarlos en hombros hasta el río de su aldea
Vi arrojarlos uno a uno desde un puente imaginario
Vi secar ese río hasta las últimas lágrimas
y lo único que hallaron fue el cuerpo de Cristo
9
Vi a Marilyn Monroe dando de mamar a su sombra
tenía los pechos tristes
y usaba camisa de fuerza para dormir
Se había tatuado en la espalda algo revelador
También Dios fue mi amante
23
Vi a Kafka en el cuarto de los juguetes
Conducía un tren infinito
sobre rieles que parecían anguilas
Bajo la cama otro niño desarmaba
una oruga fluorescente
La oruga tenía el rostro de Kafka
también los muebles, los relojes
las paredes tenían su rostro
las arañas aburridas en sus telas
los juguetes en la habitación
El único que no tenía el rostro de Kafka
era el propio Kafka cuyo rostro
semejaba una página en blanco
Mario Meléndez é um poeta chileno nascido em Linares (1971). Seus livros incluem Vuelo subterráneo, El circo de papel, La muerte tiene los días contados, Esperando a Perec, Jardín de escombros e El mago de la soledad. Alguns de seus trabalhos foram traduzidos para mais de 15 idiomas. Em 2012, passou a residir na Itália e, no ano seguinte, recebeu a medalha do Presidente da República Italiana, concedida pela Fondazione Internazionale Don Luigi di Liegro. Em 2015, foi incluído na antologia El canon abierto. Última poesía en español (Madri, Visor). Em 2017, alguns de seus poemas foram traduzidos para o inglês na lendária Poetry Magazine de Chicago. Em 2018, retornou ao Chile para se tornar editor geral da Fundação Vicente Huidobro. Em 2022, a RIL editores publicou sua poesia reunida sob o título Apuntes para una leyenda e a antologia Réquiem para frutas suicidas.