ENSAIO

Amanhã não tem ninguém

Imagem: Rocco/Reprodução.

Cláudio Trasferetti
Indaiatuba – SP

Queria ler “Movimento 78”, o mais recente livro de Flávio Izhaki, mas acabei me esbarrando em “Amanhã não tem ninguém”, título que ele lançou em 2013. Trata-se de um livro com múltiplos narradores que pertencem a quatro gerações de uma mesma família de origem judaica, cujo patriarca, Natan, se viu obrigado, no fim de sua adolescência, a assumir a relojoaria do pai falecido.

O livro nos convida a testemunhar como esses narradores lidam com questões tão humanas quanto a solidão, a sensação de não pertencimento, as dificuldades de expressão e comunicação, o desconforto com as expectativas alheias e heranças e papeis não-desejados. Com eles, percorremos cenários que todos conhecemos e onde os dramas acontecem: residências, hospitais, escolas, cemitérios… E, com eles, repensamos esse objeto que personifica o tempo chamado relógio.

A leitura me prendeu muito e me fez lembrar da época em que descobri a escritora italiana Natalia Ginzburg e não conseguia parar de ler os livros dela. Percebi, então, um pequeno parentesco, um certo diálogo entre “Caro Michele”, um dos livros da Ginzburg, e o livro do Izhaki, tendo a multiplicidade narrativa (“Caro Michele” é parcialmente um romance epistolar) e os dramas familiares como principais pontos de contato.

“Amanhã…” guarda algumas ironias e alguns mistérios também. Emocionante é o trecho em que Natan, já idoso e com alguns distúrbios mentais, encontra na rua uma desconhecida que o chama de Sergio com uma certa carga afetiva e o faz ficar com a pulga atrás da orelha, considerando a possibilidade de que ele realmente fosse o Sergio “dela”. Outro trecho emocionante é o que narra o primeiro óbito de um paciente do jovem doutor Nikolas. Esse médico que não dispõe da frieza necessária para conviver com a morte de seus pacientes é certamente uma personagem impactante.

E me parece que a ironia principal do enredo reside no fato de que a personagem que, em certos momentos, se apresenta como guardiã da identidade judaica do grupo talvez não pudesse pertencer a ele se os critérios canônicos fossem levados a ferro e fogo. Mas, mais não posso dizer. Acredito que os leitores possam se beneficiar muito das experiências de alteridade proporcionadas por esse livro com dramas tão palpáveis e contemporâneos. Diria que, embora desacertos, desencantos e desencontros deem a tônica do livro, nem tudo é tristeza e fracasso em “Amanhã…”. Em seu final, há até uma nota de redenção quando se cogita, mesmo que de maneira truncada, a possibilidade da ressurreição.

Claudio Trasferetti é químico e leitor diletante.

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