POESIA

Inéditos de Mar Becker

Imagem: Oscar Gustave Rejlander, 1856.

I

pelo vento, o modo como ele se se inclina, sei que faz pouco na violeta a última floração

.

o que chamo de anjos são como que
as sombras que ninguém viu mas certo
pousaram nas teclas à
hora em que irrefletidamente paul wittgenstein o
pianista pôs sua mão fantasma
sobre o piano e tocou
e fez soar
algo
no vento
esquecendo por meio segundo o
braço perdido
na guerra

.

chegar muda ao último pensamento em torno do texto. e descobrir ─ no que ali se estabelece como campo arqueológico ─ a palavra exata, capaz de trincar ─ mas não quebrar ─ seu esqueleto de cristal

II

em algum momento, escrever em mim assemelha-se a estar lendo o que outra escreve. essa outra, sinto que devo protegê-la, devo guardar seu lugar

.

também por isso que me habituei a repetir palavras escritas dizendo-as muito baixo logo depois de fechar o caderno ─ continuo um pouco mais, não terminei ainda de devolver cada uma a seu destino de cumprir-se escavando um palato ali onde tudo chora venenosamente à volta da cidreira (…)

.

a gata ouve e chega perto, mia. não quer de mim uma resposta, quer fazer ronda ─ é sua maneira de aguardar a que a noite dessalgue meus joelhos paupérrimos

.

olhamo-nos, persistimos. e tudo o mais parece saber que não se devem perturbar dois animais felinizando-se assim, espreitando-se e medindo forças, comparando-se na extensão da queimadura

III


um veleiro-fantasma atravessando o sangue; de tempo em tempo, passa pelo que digo —
com sua asa de sombra

.

meu coração, noite devorada —

.

em algum momento, tomar nota de como a garoa desce negra ao abrir dos rímeis envelhecidos

vir com as mãos silenciosas, como tivessem trabalhado no desalmar de uma criança sem foz entre amoras

procurar a carne de toda lágrima

.

a noite das mulheres ilegíveis deve poder subir ao texto, deve poder assustá-lo e amá-lo, deve assaltá-lo como também depois de um tempo me olhando no espelho me assalta o rosto de uma estranha

Mar Becker nasceu em Passo Fundo (RS) e mora em São Paulo (SP). Autora de “Cova profunda é a boca das mulheres estranhas” (Círculo de Poemas/2024), “Canção derruída” (Assírio Alvim/2023) e outros.

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Um comentário sobre “Inéditos de Mar Becker”

  1. Jorge Rein disse:

    Mar sendo mar. Esse sal mais profundo. Alerta de naufrágio. Aviso aos navegantes.

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