(De Viagem a um deserto interior. Ateliê Editorial)
Lembranças que perdemos: um quimono bordado pelo bisavô com linhas de seda que ele próprio tingiu. Na altura da nuca, o brasão da família, em lilás, que eu gostaria de ter tatuado para não me esquecer de como era. Da bisavó, um andor em miniatura, sobre o qual um pequenino casal de madeira se equilibrava. A caneta-tinteiro do avô que buscava a perfeição dos kanjis. O caderno de receitas da avó, escrito no português todo peculiar que ela inventou.
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(De Partes homólogas. Reformatório)
I
Quanto a flores, o crisântemo dos cemitérios e altares budistas.
O lótus branco que nasce na lama.
A acácia que não tem perfume.
O ipê que os imigrantes japoneses adotaram por saudade das cerejeiras.
E a flor do capim.
II
Se fosse possível aprender a distância:
“A arte de ser gueixa em dez lições”,
“Curso introdutório para dervixes”,
“Método samurai nível avançado”,
“Aulas de canto para muezzins”,
“Meditação inindfiilness com Buda Shakyamuni”.
III
Do sono:
Cenas de cinema em câmera lenta.
Garupa de motocicleta.
Narração de partida de golfe.
Discursos cujo conteúdo não se compreende.
Chuva caindo em telhado de zinco.
Pescaria.
Estrada sem curva.
O movimento e o som de uma fogueira.
O grilo quando canta.
IV
Quanto a profissões, massagista de cachorro.
Tradutora de pássaro.
Manobrista de mula.
Babá de bicho-preguiça.
V
Sons que acordam a tristeza adormecida.
A cuíca que chora numa roda de samba.
O uivo de um único lobo.
A canção dos plantadores de algodão e das plantadoras de arroz.
A kalimba que faz lembrar a entrada do céu quando é apenas
Uma rabeca antecipando a tragédia na festa de casamento ao ar livre.
O eco eterno da ninfa repetindo o nome de Narciso.
Notas de acordeón ressoando numa casa vazia.
A gaita que meu avô tocava.
O canto do pássaro na gaiola.
Leila Guenther é autora de Partes homólogas (Reformatório, 2019); Viagem a um deserto interior (Ateliê Editorial, 2015), selecionado no Programa Petrobras Cultural e finalista do Prêmio Jabuti; e O voo noturno das galinhas (Ateliê Editorial, 2006), traduzido para o espanhol (Borrador Editores) e editado também em Portugal (Nova Delphi). Participou de antologias dentro e fora do Brasil. O conto “Romã” foi publicado pela primeira vez em 50 versões de amor e prazer: 50 contos eróticos por 13 autoras brasileiras (Geração Editorial, 2012), traduzido para o inglês para a Wasafiri Magazine, volume 30 (2015) e integra o livro de contos Partes Homólogas (Reformatório, 2019). Publicou em 2025, pela editora Peirópolis, o livro Este lado para baixo.
