APENAS DOIS OU TRÊS DOS MEUS AMIGOS
apenas dois ou três dos meus amigos
suportam poesia
ou até a admiram e
conforme seus estados de espírito
acalentam em bolsos de jaqueta
um ou outro poema perverso
que nada seria não fossem ali as chaves
ou o papelzinho de registro do ponto
e uns perdidos fones de ouvido
mas a maioria dos meus amigos
(mais uns três ou quatro)
dela não fazem muito caso
por assim dizer
a suportam
e até a admiram
desde que o poeta esteja longe
mas essa é a graça da vida
me disse o melhor amigo
enquanto descosturava a barra da calça
pois havia crescido em uma noite
o que não crescera em anos
§
COHAB 2
para Augusto Nesi
se te ocorrer
a lo largo
um título vindo do nada
que toque como uma doninha
o coração da relva
não te furtes
ó Rolimã
em deixar vazar
a despenteada alegria
não queiras desperdiçar o poema
nele só busca esta
a alegria
tiveste a sorte
Nasuruguaiana
de uma pobre aristocracia
devo, não nego
te vi fazendo o break escondido
copiando cassetes malquistos
já na Caxias
ias pro Aristos
fossem quais fossem os ri(s)cos
podes até gostar
mas em alguns minutos
vai estar sisudo
ao contrário
a todo mundo só ocorre cobrar
palavras ao mudo
que delas surja
o pastiçal irônico
na rocha
hibridado
e que ton rêve flottant
como evocava Gautier
já de láudano bem mamado
§
UMA TARDE NA GRÁFICA
o vizinho dono da gráfica
era a cara do Jorge Amado
de quem eu já havia lido
Capitães de areia, Jubiabá, Mar morto
livros como doce de abóbora e ambrosia de sangue
livros bons e honestos
em que na foto da orelha
era a cara do seu Jair da gráfica que eu via
aqueles nomes eram eu
a Dora, o Balduíno, o Pirulito
nomes fronteiriços mestiços
nomes que passavam debaixo das portas
e carregavam o ar de hibiscos
e eu pensava que os livros
fossem todos imprimidos
pelas máquinas monstruosas do vizinho
o papel rosa a tipografia esmerada tirada a pinça
e encadernados ali mesmo
nas agulhas de dona Tereza que luziam
no escuro do quartinho
seu Jair ele mesmo um Jorge
nas mãos o sabão rosa e a tinta preta
que eram gretar e gretar
seu Jair ele mesmo amado
pela mulher e pelos filhos
o chumbo em exílio nos rins
assim como também os filhos
o Gilmar, o Paulo, o Cide
em exílio imprimiam
as heteróclitas estamparias
da mão de Fátima, do cedro-do-Líbano
surgidas não sei de onde
de dentro do centro do destino
da loja do Jamil, do Youssef e da Karime
nomes fronteiriços
nomes da cor do hibisco
naquela época éramos todos
meio baianos e meio palestinos
§
REDUÇÃO DE DANOS
para um paciente
hoje eu o vi
era um sussurro em direção a nada
numa esquina muito longe
tinha as mãos esquálidas
os dedos com fome de ar
e nada que tocasse nessa hora
atingiria calor
ou a mais débil luzinha
hoje eu o vi
ao passar de carro
ele conversava com o meio-dia
dizia algo como
tenha cuidado
com a voz macia de dentes suprimidos
ele dizia algo como
corta meus cabelos
lava meus pés
enxuga minha corcova
enquanto eu passava de carro
nessa esquina distante
hoje eu o vi
fazia tempo que não o via
cada vez mais ele parecia
um caminho de lesma
feito de saliva
tinha um ar bem antigo nas narinas
e olhou muito forte
pelo retrovisor
como se dissesse
não quero que vocês me chamem
nunca mais de Jesus
§
JUVENTUDE
alguém de nós sempre fica pra trás
ou retorna pra buscar a bagagem
extraviada em alguma margem
e não mais se emparelha
ainda que pisem sobre os nossos
decalcados no barro e no cascalho
os passos dele não nos alcançam
vai buscar-nos na caliça
no sereno amanhecido
dos quintais desalojados
ou nas bocas de lobo fumegantes
nós chegamos antes portanto
à casa abandonada
de nossos pais
mas há sempre um amigo
a sacudir seu chaveiro no portão
a bater palmas
o que acorda a casa adormecida
a ele um café é ofertado
e um colchonete é arrumado na despensa
pra que durma um pouquinho
antes da volta ao caminho
pra onde já partimos satisfeitos
ele nos seguirá pelas ruas
chateado de não o termos esperado
mas ainda assim feliz
por irmos deixando
pelo caminho as migalhas de pão
com que encontrar-nos
alguém de nós sempre fica pra trás
essa é a jornada necessária
se todos fôssemos juntos
na direção do abismo
não seria tão engraçado
§
PENSÃO DOS OSSOS
para Lucio Carvalho
na Pensão dos Ossos
o estudante desmiolado
protesta quase à morte
de tanto espirrar
na janela que dá para a caixa-dágua
que dá para um pequeno perau
onde estragam morangas precoces
na Pensão dos Ossos
meus livros de anatomia
na estante de compensado tão torta
como alguém que espera na fila
em posição desconfortável
como alguém que só cuida
e não sente as juntas
como alguém que se ajusta
à própria inocência incoerente
na Pensão dos Ossos
Queixinho e os outros músicos
se revezam no cavaco e no bongô
enquanto no escuro
sorvem relâmpagos nos lábios finos
é verão
os Aedes se revezam também
o macho zumbe a fêmea pica
por cima das roupas
tanto faz
na Pensão dos Ossos
o café é bom
mas só tem até sábado
domingo não tem
domingo é amarelo
domingo todas as penas
recaem sobre os vizinhos
junto à fumaça dos churrascos
junto do silêncio miserável
na Pensão dos Ossos
ontem
morreu o Seu Alcindo
não houve luta
não houve grito
só o silêncio miserável
e sem misericórdia
sem pão ou circo
sem hóstia ou blefe
sem nada que prestasse ou que ofendesse
só morreu
um Esmilindro qualquer, um Alfredo
um Manuel das antigas
o copo de água na beira do leito trazia
delicadíssima película
§
O GRANDE IMBAÁ
a barriga do surucuá sempre vermelha
o cortador de arame passa a mão na testa
o vento campereia e se cansa
a vida é dura, não há sobrenome para a morte
resta uma coxilha intacta
na sanga o lambari diz as últimas palavras
não foi pescado nem frito
no bolicho do Ataliba
alguém acendeu uma vela
o temporal promete vagalhões
os dois filhos na cidade
almoço servido para um
os cachorros são heróis de vento
Marco de Menezes (Uruguaiana/RS, 1968) é poeta e médico. Publicou os seguintes livros de poesia: As horas dragas (1999), Pés de aragem (2007), Fim das coisas velhas (2009 – vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura nas categorias ‘Poesia’ e ‘Livro do Ano’, em 2010), Ode paranoide (2010), Pequena madrugada antes da meia-noite (2016) e Como se constrói uma melancolia de domingo (2018). Em 2025 lançou pela Urutau o livro Como estou dirigindo.
