POESIA

Os cachorros são heróis de vento

Imagem: Hugo Simberg, 1909.

APENAS DOIS OU TRÊS DOS MEUS AMIGOS

apenas dois ou três dos meus amigos
suportam poesia
ou até a admiram e
conforme seus estados de espírito
acalentam em bolsos de jaqueta
um ou outro poema perverso
que nada seria não fossem ali as chaves
ou o papelzinho de registro do ponto
e uns perdidos fones de ouvido

mas a maioria dos meus amigos
(mais uns três ou quatro)
dela não fazem muito caso
por assim dizer
a suportam
e até a admiram
desde que o poeta esteja longe

mas essa é a graça da vida
me disse o melhor amigo
enquanto descosturava a barra da calça
pois havia crescido em uma noite
o que não crescera em anos

§

COHAB 2

para Augusto Nesi

se te ocorrer
a lo largo
um título vindo do nada
que toque como uma doninha
o coração da relva
não te furtes
ó Rolimã
em deixar vazar
a despenteada alegria

não queiras desperdiçar o poema
nele só busca esta
a alegria

tiveste a sorte
Nasuruguaiana
de uma pobre aristocracia

devo, não nego
te vi fazendo o break escondido
copiando cassetes malquistos

já na Caxias
ias pro Aristos
fossem quais fossem os ri(s)cos

podes até gostar
mas em alguns minutos
vai estar sisudo

ao contrário
a todo mundo só ocorre cobrar
palavras ao mudo

que delas surja
o pastiçal irônico
na rocha
hibridado

e que ton rêve flottant
como evocava Gautier
já de láudano bem mamado

§

UMA TARDE NA GRÁFICA

o vizinho dono da gráfica
era a cara do Jorge Amado
de quem eu já havia lido
Capitães de areia, Jubiabá, Mar morto
livros como doce de abóbora e ambrosia de sangue
livros bons e honestos
em que na foto da orelha
era a cara do seu Jair da gráfica que eu via

aqueles nomes eram eu
a Dora, o Balduíno, o Pirulito
nomes fronteiriços mestiços
nomes que passavam debaixo das portas
e carregavam o ar de hibiscos

e eu pensava que os livros
fossem todos imprimidos
pelas máquinas monstruosas do vizinho
o papel rosa a tipografia esmerada tirada a pinça
e encadernados ali mesmo
nas agulhas de dona Tereza que luziam
no escuro do quartinho

seu Jair ele mesmo um Jorge
nas mãos o sabão rosa e a tinta preta
que eram gretar e gretar

seu Jair ele mesmo amado
pela mulher e pelos filhos
o chumbo em exílio nos rins

assim como também os filhos
o Gilmar, o Paulo, o Cide
em exílio imprimiam
as heteróclitas estamparias
da mão de Fátima, do cedro-do-Líbano
surgidas não sei de onde
de dentro do centro do destino
da loja do Jamil, do Youssef e da Karime
nomes fronteiriços
nomes da cor do hibisco

naquela época éramos todos
meio baianos e meio palestinos

§

REDUÇÃO DE DANOS

para um paciente

hoje eu o vi
era um sussurro em direção a nada
numa esquina muito longe
tinha as mãos esquálidas
os dedos com fome de ar
e nada que tocasse nessa hora
atingiria calor
ou a mais débil luzinha

hoje eu o vi
ao passar de carro
ele conversava com o meio-dia
dizia algo como
tenha cuidado
com a voz macia de dentes suprimidos
ele dizia algo como
corta meus cabelos
lava meus pés
enxuga minha corcova
enquanto eu passava de carro
nessa esquina distante

hoje eu o vi
fazia tempo que não o via
cada vez mais ele parecia
um caminho de lesma
feito de saliva
tinha um ar bem antigo nas narinas
e olhou muito forte
pelo retrovisor
como se dissesse
não quero que vocês me chamem
nunca mais de Jesus

§

JUVENTUDE

alguém de nós sempre fica pra trás
ou retorna pra buscar a bagagem
extraviada em alguma margem
e não mais se emparelha

ainda que pisem sobre os nossos
decalcados no barro e no cascalho
os passos dele não nos alcançam

vai buscar-nos na caliça
no sereno amanhecido
dos quintais desalojados
ou nas bocas de lobo fumegantes

nós chegamos antes portanto
à casa abandonada
de nossos pais

mas há sempre um amigo
a sacudir seu chaveiro no portão
a bater palmas
o que acorda a casa adormecida

a ele um café é ofertado
e um colchonete é arrumado na despensa
pra que durma um pouquinho
antes da volta ao caminho
pra onde já partimos satisfeitos

ele nos seguirá pelas ruas
chateado de não o termos esperado
mas ainda assim feliz
por irmos deixando
pelo caminho as migalhas de pão
com que encontrar-nos

alguém de nós sempre fica pra trás
essa é a jornada necessária
se todos fôssemos juntos
na direção do abismo
não seria tão engraçado

§

PENSÃO DOS OSSOS 

para Lucio Carvalho

na Pensão dos Ossos
o estudante desmiolado 
protesta quase à morte 
de tanto espirrar 
na janela que dá para a caixa-dágua 
que dá para um pequeno perau 
onde estragam morangas precoces

na Pensão dos Ossos 
meus livros de anatomia
na estante de compensado tão torta
como alguém que espera na fila 
em posição desconfortável 
como alguém que só cuida 
e não sente as juntas 
como alguém que se ajusta 
à própria inocência incoerente 

na Pensão dos Ossos
Queixinho e os outros músicos
se revezam no cavaco e no bongô
enquanto no escuro 
sorvem relâmpagos nos lábios finos 
é verão 
os Aedes se revezam também 
o macho zumbe a fêmea pica 
por cima das roupas
tanto faz 
na Pensão dos Ossos 
o café é bom
mas só tem até sábado 
domingo não tem  
domingo é amarelo
domingo todas as penas 
recaem sobre os vizinhos 
junto à fumaça dos churrascos 
junto do silêncio miserável 

na Pensão dos Ossos 
ontem 
morreu o Seu Alcindo 
não houve luta 
não houve grito
só o silêncio miserável
e sem misericórdia
sem pão ou circo 
sem hóstia ou blefe 
sem nada que prestasse ou que ofendesse
só morreu 
um Esmilindro qualquer, um Alfredo 
um Manuel das antigas 
o copo de água na beira do leito trazia
delicadíssima película

§

O GRANDE IMBAÁ

a barriga do surucuá sempre vermelha
o cortador de arame passa a mão na testa

o vento campereia e se cansa
a vida é dura, não há sobrenome para a morte
resta uma coxilha intacta

na sanga o lambari diz as últimas palavras
não foi pescado nem frito

no bolicho do Ataliba
alguém acendeu uma vela
o temporal promete vagalhões

os dois filhos na cidade
almoço servido para um
os cachorros são heróis de vento

Marco de Menezes (Uruguaiana/RS, 1968) é poeta e médico. Publicou os seguintes livros de poesia: As horas dragas (1999), Pés de aragem (2007), Fim das coisas velhas (2009 – vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura nas categorias ‘Poesia’ e ‘Livro do Ano’, em 2010), Ode paranoide (2010), Pequena madrugada antes da meia-noite (2016) e Como se constrói uma melancolia de domingo (2018). Em 2025 lançou pela Urutau o livro Como estou dirigindo.


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