Tentei ler minha sorte
nas sobras de um prato
E me lembrei de uma pregação
dos dias pentecostais
O retrovisor não dará nada
como resposta ao futuro
Existe uma crueldade
no cão que guarda o tempo
Há sempre um osso
a ser roído
Há sempre uma torneira
meio aberta
destilando um filete d’água
O som do meu sonho
é uma pia que goteja
em acordes tristes
ao longo dos anos
§
Volto agora ao mesmo cálice corrosivo
e torno a beber dele e com ele para dizer que
odeio as mãos de cascavel que beijei e que
gritaria sobre sua feiura da janela de qualquer carro
que me permitisse embarcar e que
na histeria de seus pesadelos frívolos
invocarei um enxame de vagalumes que ladram
brilham e ladram brilham e ladram
A cada gole que bebo meu estômago faz zoloft
zoloft zoloft zoloft zoloft
Nessa pobre onomatopeia que se tornou minha vida
não há nada tão quebrado quanto os teus sonhos
Estou triste e me preparo para mais um dia duro
Sinto fome frio raiva e meu dedo do pé dói
mas ainda assim há sangue correndo em minhas veias
Me lembro de algo que anotei:
a melhor forma de homenagear uma pessoa é escrevendo
sobre ela (para ela contra ela a mercê dela)
Portanto, em verdade te digo: receba esta homenagem
como sinal do meu escárnio e da minha insanidade
em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo
§
Who’d believe me if
I said, ‘They took and
split me open from
scalp to crotch, and
still I’m alive
Denise Levertov
Busco algum esclarecimento sobre os dias tórridos
Ignorei as mensagens cifradas e jurei solenemente
Reduzi o mundo às duas sílabas do seu nome
Estiquei os nervos como um chiclete viscoso
Percorri de ponta a ponta uma febre tropical
Contaminei os reservatórios da raiz à orelha
Pedi para que me dessem um pouco mais
Arremessei sob o arado todas as ervas daninhas
Tentei fazer sentido na ambivalência do amor
Conservei-me entre altos desfiladeiros
E despenquei no silêncio das caixas postais
Antevi minha predileção por paisagens movediças
Recitei todas as maldições da minha língua materna
Ensinei ao meu peito a desintegração da saudade
Perdi tudo cabível de ser perdido:
clareira, gaveta, trilhos,
cúmplices, tempo, endereço;
a causa de tudo,
tudo onde um dia penetrei
Marina Mole é cantora, compositora, artista visual, poeta e jornalista. Mora em São Paulo. @mole.marina