POESIA

Poemas de Nuno Rau

Imagem: Patuá/Reprodução.

MARAMBAIA

extensa língua de areia mar adentro, restinga,
vista num dia claro como este
em que, sentado no bar, você conversa
com os barcos que imploram pelos cardumes
desaparecidos enquanto âncoras
arriscam grafismos na areia percorrida por correntes
que logo os apagam enquanto penteiam
algas, a faixa de areia clara
que se estende mar adentro não passa
de uma falha do continente, erro
das eras acumuladas enviando marés
que se propagaram carreando sedimentos
até o estuário dos dias Eles se elevam
como ondas e se deprimem no baixio
das horas diante da agitação
do desejo Extensa língua de areia mar
afora, talvez ninguém tenha pensado
que o desvio dos séculos e a loucura
da terra armaram dentro do erro um dispositivo
da beleza, com toda
paciência e toda
fúria

§

UM ARTEFATO ACENDE OS EDIFÍCIOS DA PRAÇA QUANDO EXPLODE

tudo parecia indicar que era uma outra estação
de metrô Você viaja incógnito e sobe as escadas
em direção à luz Um terrível equívoco nos dias
corrói as telas e você se sente o Grande Outro diante
do mundo que não escuta além das motosserras
e da explosão dos motores movidos a combustíveis
fósseis enquanto você traz
no bolso um enigma na forma de circuito
impresso indeterminado e sem alvo preferencial
nem tutorial para compreensão imediata que
possibilite desativar em seus mínimos
filamentos o nanoimpulso elétrico que vai detonar
a bomba e quando você abraça
o estranho e coloca o poema em seu bolso
sem que ele entenda ou perceba
tudo parece explodir Não: não parece Tudo
explode e voam estilhaços que são lâminas no céu
das suas certezas Sim, agora você já pode se perder
de si pela cidade – essa antologia
infinita, sem fronteiras
nem bunkers

§

NEOLIB

estou no coração do centro da cidade do rio de janeiro.

ando pela avenida atordoado com meus desejos
de classe e converso com um desconhecido
amigo que trabalha em frente à mesma
janela de onde vejo a torre órfã de uma igreja
em cujo topo uma mulher pisa a orbe
diminuta como são diminutos os meus sonhos
de classe mediados por páginas que querem que eu
veja as coisas como as coisas realmente são
do jeito que nelas aparece sob a fina membrana
ou névoa que a tudo envolve enquanto salta
do papel um sorriso platinado e úmido
que me desvia os sentidos do medo que sinto
que da curva abrupta da próxima esquina
pulem na minha frente os meus pesadelos
de classe na forma de garotos armados
até os dentes cariados que entopem bocas
falando dialetos que não entendo e empunhando
lâminas pra riscar a verdade bem fundo
em minha carne.

se bem me lembro era um mês de junho quando
nesta mesma avenida assisti descerem de carros
alegóricos da polícia militar elementos à paisana
que se infiltraram na multidão fortemente armada
de flores e palavras – eles traziam máscaras
ninja escondidas nos bolsos e outros apetrechos
para insuflar a massa em direção às brigadas
fardadas e alinhadas atrás de escudos em todas
as rotas de fuga portando amplos estoques de balas
de borracha e sprays de gás de pimenta adquiridos
pela alocação de recursos que custam o massacre
da educação dos garotos que saltam do meu pesadelo
de classe para as casas de detenção enquanto aspiram
o vapor azul cobalto do crack antes de empunharem
armas brancas que são espelhos dançando
na frente de meus olhos numa hora em que a membrana
invisível não me protege.

paro na frente da banca de revistas com meu interesse
na cotação de hoje das ações da empresa estatal
que despencaram inacreditavelmente pensando
em comprar um substancial lote delas porque lastreadas
na imensa riqueza nacional que também é dos garotos
que no meu pesadelo interpretam o papel de feras
filhas de um massacre e penso a vida virou um drama
burguês de quinta categoria enquanto as imagens
do papel jornal mostram a cara de um servidor

do sistema democraticamente eleito pelos cidadãos
de outra cidade que exibe seu sorriso
blindado e sem cáries afirmando ser preciso virar
a página do massacre do bom senso e da educação
porque tudo não passa de agitação de elementos
infiltrados que tornaram imprescindível o uso
da repressão violenta do aparelho de Estado
governado por sua pessoa acessível e aberta
pelo diálogo armado de valores éticos e cristãos
que estão aí para combater a intolerância de quem
se manifesta contra o massacre da educação
dos garotos da esquina que meus projetos
de classe querem mandar mais cedo para trás
das grades que protegem meus melhores
anseios democráticos.

a noite alcança a cidade maravilhosa.

minha fé se desloca entre os abismos das palavras:
assim como tudo um dia espero emudecer
e não gosto de versos de circunstância (não faças
versos sobre acontecimentos, ele disse) como
também quase sempre não gosto quando poesia
e política se amam muito abertamente – mas
espero emudecer
espero emudecer enquanto
meu corpo inteiro pensa: cinquenta anos
e nenhum

§

NÊNIA PARA A CLASSE MÉDIA BRASILEIRA

Copacabana não tem mais nenhuma livraria. Há trinta anos eram quatro ou cinco, sem contar um ou dois sebos. O bairro de classe média mais adensado do Brasil não tem nenhuma livraria. Cento e cinquenta mil habitantes em cerca de oito quilômetros quadrados, o que, descontando a área de ruas e praças, atinge uma média de quarenta moradores por cada metro quadrado; e nenhuma livraria. Cem quarteirões, setenta e oito ruas, cinco avenidas, seis travessas, três ladeiras e nenhuma livraria. Um IDH – Índice de Desenvolvimento Humano – de 0,956 e nenhuma livraria. É necessário lembrar que acima de 0,900 o IDH é considerado muito alto. Numa de suas principais avenidas, a Princesa Isabel, circulam em torno de cento e setenta mil carros por dia, mas o bairro não tem nenhuma livraria. Quatro mil pessoas ganham mais de vinte salários-mínimos, mas não há livrarias. Nove mil pessoas ganham entre dez e vinte salários-mínimos, vinte mil ganham entre cinco e dez, cem mil pessoas ganham entre um e cinco salários-mínimos, mas nenhuma livraria. Há em torno de oitenta e duas mil residências, em sua maioria apartamentos que possuem, em média, oitenta e cinco metros quadrados, e nenhuma livraria. Apesar das mudanças na base tecnológica, ainda resistem noventa e dois mil telefones fixos em paralelo aos cento e oitenta mil telefones celulares, mas quase nenhum deles deve ter falado em Drummond ou Bandeira ou Clarice ou Hilda nos últimos meses, porque não há nenhuma livraria no bairro. O consumo de energia elétrica ultrapassa a casa dos novecentos e cinquenta mil quilowatts-hora por mês, mas nenhum deles ilumina uma livraria. Duzentos e quarenta bares, cento e quarenta restaurantes. Nenhuma livraria. Sessenta e um por cento das residências possuem um automóvel, mas não restou nenhuma livraria. Mais de cem hotéis se espalham por suas ruas; nenhuma livraria. Dois mil e novecentos estabelecimentos comerciais, nenhum deles hoje é uma livraria. Mil e cem pequenas fábricas e nenhuma livraria. Seis igrejas católicas, duas igrejas messiânicas, duas igrejas presbiterianas, duas igrejas batistas, três sinagogas e nenhuma livraria. Quatorze escolas municipais, onze escolas estaduais e vinte e cinco escolas particulares pontuam ruas e praças, mas nenhuma livraria. Pelo bairro circulam sete milhões e meio de passageiros por mês, se não contarmos os que vão nos táxis e vans, mas não sobrou nenhuma livraria. O valor médio do metro quadrado de um apartamento ultrapassa os dez mil reais em Copacabana, cerca de cinco mil dólares estadunidenses, mas não existe sequer uma livraria. Se cada habitante do bairro comprasse um livro por ano, seriam vendidos, em média, doze mil livros por mês no bairro, e o faturamento mensal de uma livraria seria algo em torno de setecentos mil reais. Bastava que cada morador comprasse apenas um livro por ano, mas não. Por isso não existe nenhuma livraria. Nem uma.

§

UMA PEDREIRA

1.
se uma ferida pudesse erguer-se, seria
essa empena, suas partículas luzindo
no verão sem clemência, proa abrupta
que mede imóvel o mar de casas mudas
imersas no betume da noite ocidental,
a história narrada no vazio vertical
de quem foi triturada pelos dentes rudes
das britadeiras e contabilizada em vagões
lentos como lotes de vestígios que agora
dormem seu sono inquieto em anos
de concreto atravessados pelo aço. Ou

2.
fosse a vida uma vela nunca panda,
lona que o vento não enfuna, seria
essa empena hirta, muralha, seus segredos
guardados no minério ostentando
o que lhe foi subtraído como um brasão
sem armas, cada mínima traição
do acaso grafada em mica, noite
dentro da noite de seus poros, uma vela
medindo a calmaria, metamórfica
memória de lava, enorme sedimento
de um espasmo, cinza de carne, granito.

Nuno Rau, arquiteto, professor de história da arte, tem poemas em diversas revistas literárias, e nas antologias ‘Desvio para o vermelho’, do Centro Cultural São Paulo, ‘Escriptonita’, que co-organizou, ’29 de Abril: o verso da violência’, ‘Ponte de Versos’, ‘Opiniães’ e ‘Jumento com faixa – deboches e antiodes ao fascismo’, entre outras. Publicou o livro ‘Mecânica Aplicada’ (2017), poemas, finalista do 60º Prêmio Jabuti e do 3º Prêmio Rio de Literatura, e ‘Prosa da Cidade’ (2025), também de poemas. É coeditor da revista mallarmargens.com e ministra oficinas de poesia no Instituto Estação das Letras – IEL. Os poemas desta seleção integram o livro “Prosa da Cidade” (Patuá, 2025).


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