FICÇÃO

A passagem do dragão *

Imagem: Mead Dood, 1896.

Pedro Salgueiro
Tamboril – CE

Foi assim de repente, quando menos se esperava (em plena tarde morna), o sol tornou-se pálido, para sumir logo em seguida. O povo ainda não havia acabado de se assustar — ouvimos no meio da escuridão um bater de asas atravessando o vilarejo, como se um bando de pássaros saísse em revoada. Um pouco antes de os moradores da vila abandonarem suas casas em grande alvoroço, os bichos já alarmavam o acontecido: galinhas cacarejavam, galos cantavam em desespero, porcos fugiam pelas ruas atropelando as pessoas…

O relógio do mundo parecia ter sido alterado, os sons se intensificavam mais e mais e não havia quem não gritasse ou corresse de um lado para o outro. Mulheres procuravam seus maridos, mães clamavam pelos filhos, ninguém se entendia.

Alguém com a voz desesperada anunciou o fim do mundo: suas palavras ecoaram em outras bocas … e o que se ouviu depois foi um desfiar de rezas e choros. Os mais agitados gritavam o nome de Deus, pedindo ajuda; outros sussurravam padre-nossos em meio ao soluço intenso. A maioria andava de um canto a outro feito barata tonta.

(Estávamos apreensivos desde a semana anterior ao acontecimento, quando a chegada de três grupos de forasteiros fez com que todos saíssem para as ruas e corressem, admirados, atrás dos automóveis, que pela primeira vez cortavam a poeira de nossas ruas. Das três equipes somente uma falava de maneira compreensível, as outras duas apenas trocavam entre si uns mungangos. De início se instalaram na praça da matriz, armaram barracas de lona e começaram a abrir grandes caixas trazidas nos automóveis; vez em quando tinham que interromper o trabalho para afastar a multidão de curiosos que avançava a todo instante. As crianças infiltravam-se entre eles, rindo muito da voz arrevesada dos homens brancos, que suavam como fossem se desmanchar. Com uma semana, todos os aparelhos já estavam montados, grandes canhões apontavam, de diversos cantos da praça, para o céu. Os mais entendidos da vila, fingindo compreender as explicações dos forasteiros, tentavam acalmar a maioria, que permanecia apreensiva com tudo aquilo. Antes que os moradores do povoado se acostumassem com os visitantes e suas extraordinárias máquinas de apontar para o céu, o mundo escureceu pela primeira vez às três da tarde.)

Mas também de repente, como tinha escurecido, começou a clarear: primeiro o mundo ficou novamente avermelhado, depois amarelo e logo totalmente claro. Na praça os estrangeiros davam pulos de alegria e estouravam garrafas de espumas. As três equipes agora se misturavam em abraços e os que falavam melhor tentavam, em vão, explicar aos curiosos o que havia acontecido. Demonstraram tudo com euforia, mostrando pequenas fotografias, porém não souberam explicar de onde surgiu e para onde foi o imenso pássaro que sobrevoou a vila na escuridão.

No mesmo dia desmontaram os aparelhos e foram embora, não sem antes deixarem uma estranha estátua (em homenagem ao dia da escuridão) no centro da praça: coisa que também os moradores não entenderam direito e ainda hoje perguntam uns aos outros do que se trata.

* Às 9 horas da manhã do dia 29 de maio de 1919, na pequena cidade de Sobral-Ceará – Brasil, uma comissão científica composta por astrônomos ingleses. norte-americanos e brasileiros comprovou a Teoria da Relatividade Geral, de Albert Einstein, anunciada teoricamente em 1905.


(…) Mas A passagem do Dragão, narrando o episódio do eclipse solar de 1919 em Sobral (CE), que foi acompanhado por uma comissão composta por astrônomos de vários países (os quais estariam interessados em comprovar a teoria da relatividade, de Einstein), é possivelmente o principal conto do livro. Um conto antológico —‘ fato e ficção na medida certa. Ciência e misticismo, razão e crença se misturam nessa pequena história que termina sendo uma grande metáfora do nosso atraso.

Rinaldo de Fernandes

In: Fernandes, Rinaldo de. As preciosidades alegóricas de Pedro Salgueiro. Curitiba, Rascunho, n. 103, 2008. Disponível em <https://rascunho.com.br/colunistas/rodape/as-preciosidades-alegoricas-de-pedro-salgueiro/>. Acesso em 27.04.2025


Pedro Salgueiro nasceu no Sertão do Inhamuns (Tamboril, Ceará, 1964), publicou O Peso do Morto (1995), O Espantalho (1996), Brincar com Armas (2000; 2.ª edição/On-line, França: Éditions 00h00.com, 2001), Dos Valores do Inimigo (2005) e Inimigos (2007), de contos; além de Fortaleza Voadora (2006), de crônicas, e Pici (2014), de pesquisa histórica. Prêmios: Academia Cearense de Letras, Ministério da Cultura/INL, Radio France Internationale – RFI (Prêmio da União Latina/Concurso Guimarães Rosa), Secretaria de Cultura do Estado do Ceará/SECULTCE, Secretaria de Cultura do Município de Fortaleza/SECULTFOR e Secretaria de Cultura de Sobral/CE (Prêmio Domingos Olimpio de Literatura). Contos publicados nas antologias Geração 90: Manuscritos de Computador – Org. Nélson de Oliveira (São Paulo: Boitempo, 2001), Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século XX – Org. Marcelino Freire (São Paulo: Ateliê, 2004), Contos Cruéis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea – Org. Rinaldo de Fernandes (São Paulo: Geração, 2006), Quartas Histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa – Org. Rinaldo de Fernandes (Rio de Janeiro: Garamond, 2006), Contos de Algibeira – Org. Laís Chaffe (Porto Alegre: Casa Verde, 2007), Todas as Guerras – Org. Nélson de Oliveira (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009) e Assim Você Me Mata – Org. Cláudio Brites (São Paulo: Terracota, 2012). Edita, com outros escritores, as revistas literárias Caos Portátil e Para Mamíferos. Organizou, em parceria, o Almanaque de Contos Cearenses (1997) e O Cravo Roxo do Diabo: o conto fantástico no Ceará (2011). Seu livro Dos Valores do Inimigo foi indicado pela Universidade Federal do Ceará para o seu vestibular, em 2005 e 2006, e Inimigos foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura, da Câmara Brasileira do Livro, em 2008. (Ed. Moinhos)

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Um comentário sobre “A passagem do dragão *”

  1. Chico Pascoal disse:

    Esta é a jóia maior da obra de Pedro Salgueiro. Contista-Cronista-mor das terras do Siarah.

    Evoé!!

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