POESIA

Poemas de Leonardo Antunes

Imagem: Martelo/Reprodução

logo será noite

quanto viste,
o quanto amaste,
de quanto fizeste,

ninguém jamais verá,
ninguém o saberá,
ninguém se lembrará.

§

Décima de não ser gaúcho – poemeto de alteridade

Eu não nasci no Rio Grande.
Jamais andei a cavalo.
Por isso mesmo me calo
sobre a glória de quem ande.
Ver como o pampa se expande
infinito na campanha
dá uma vertigem estranha
em alguém que foi criado,
desde pequeno, amparado
nas encostas da montanha.

Aqui, a terra é um destino.
Se alguém puxa uma cadeira
e te diz que é da fronteira,
jamais duvides, menino,
do grande orgulho uterino
que nessa origem se imprime.
(Mesmo que penses nos crimes
com que esta terra foi feita,
existe terra perfeita?
Existem homens sem crime?)

Eu sou paulista de origem,
paulistano de nascença,
do tipo que não dispensa
pizza, garoa e fuligem.
Eis a causa da vertigem
que me causam as planuras.
Fui criado na lonjura
de Embu das Artes, caipira
lá das Chácaras Bartira.
Origem não se rasura.

Mas não sei dizer ao certo
a identidade que tenho.
Às vezes triste eu me empenho
a me olhar de peito aberto
e quando mais chego perto
de alguma definição
é se afirmo, com razão,
que ter nascido paulista
me dá somente uma pista:
a de eu não ser deste chão.

§

À musa mórbida

Aprazem-te os defuntos e as carniças,
as fábulas de horror e insanidade,
o medo e tudo aquilo quanto agrade
ao verbo de uma derradeira missa.

Se falo em cemitérios, a cobiça
instala-se em teu peito ou na verdade
sou eu que a sinto na proximidade
de alguma soturnez que a mim me atiça?

À musa mórbida compete um hórrido
poeta (se não tento convencer-me
que esta tristeza minha tem sentido,

buscando na frieza um traço tórrido,
nas mágoas, que me roem feito vermes,
a certeza onde apenas me duvido).

§

Amor fati

Criatura de carne, putrescível,
plasmada nalgum ventre turvo e quente,
a fim de que do ventre te alimentes
de alheia criatura, deglutível,

se acaso te desejo, é permissível
chamar-te, à revelia do decente,
por todos os vocábulos somente
reservados ao mundo inteligível?

É fás que tua forma transitória,
fadada, contra o gosto da memória,
ao íntimo da terra e à sepultura,

evoque-se em meu verso perdurável,
do modo com que surge deleitável
aos olhos hoje em dia, com ternura?

§

Nefasto

Eu quero te dizer um sentimento,
alguma coisa inabalavelmente
minha e tua, que em todos os momentos
perdure tanto quanto se incremente.
Mas quais as juras para os corações
partidos? Para além das esperanças
desconstruídas? Para as ilusões
de que me canso e tu também te cansas?
O verbo usado é roto e esmaecido.
As juras perjuradas se antepõem
às juras com que eu próprio me invalido
e em cada instância contra mim depõem.
Ainda assim o coração predita
e oferta-te este escuso parasita.

§

tardíloquo

o primeiro poema do ano

incomposto
inescrito
mas expelido

tirado a fórceps
de escuro ventre
como um dia eu mesmo fui

não há quem queira
(nem humanos nem bichos nem poemas)
vir ao mundo

exceto por coercitiva condução

Leonardo Antunes (São Paulo, 1983) é poeta, tradutor e professor de língua e literatura grega na UFRGS. Seus mais recentes livros são “Regressos”, de que provêm os poemas desta seleção (Martelo Editorial, 2023), e a tradução de “A Ilíada de Homero em decassílabos duplos” (Zouk, 2022).

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