FICÇÃO

Professora Salime

Imagem: piano (detalhe).

Gustavo Michels Chein
Sant’ Ana do Livramento – RS

— Comece.

Minhas costas estavam molhadas de suor, meus dedos começam a se movimentar pelo teclado.

— Não! É Si bemol! Si bemol! Si bemol! Comece novamente!

— Pronto, acertou, deveria ter estudado em casa.

Antes parecia tocar sobre espinhos, agora meus dedos flexionam de maneira rápida e potente uma das Danças Húngaras de Brahms.

Seus ouvidos estavam atentos, mas sua mente flutuava, se fazia presente marcando o tempo batendo com a mão direita na tampa do piano. Quando termina a execução ela levanta da sua cadeira girando o corpo fazendo com que ficássemos um de costas para o outro, me viro e a vejo com o indicador da mão direita em riste e o punho da esquerda fechado atrás das costas, cita Cioran: “…O que você pensa sobre a linguagem não me interessa, mas o uso que você faz dela, sua linguagem própria – o instrumento e não a reflexão sobre o instrumento”.

Respeitar a partitura, porém interpretar de forma diferente do que um nativo alemão interpretaria, um alemão tocaria Brahms melhor que um brasileiro ou um italiano, por sua vez um polonês interpretaria melhor Chopin que um alemão ou um finlandês, finlandeses interpretariam com primor Sibelius, ninguém interpretaria melhor Prokofiev ou Rachmanninoff do que um russo, assim como interpretar Villa-Lobos ficaria a cargo de ninguém menos que um brasileiro, embora chineses e argentinos o interpretem também. A partitura é sagrada, porém interpretar o pertencimento de determinado compositor, o sentimento, o Zeitgeist, isso fica a cargo de uma pesquisa aprofundada para além da partitura, o que cada compositor quis dizer em determinada obra, além de enriquecer o repertório se cria um estilo próprio para executar determinada peça, já que não se pode mudar a origem da aldeia onde se fora concebido. Ou não dar tanta importância para a leitura musical como disse um antigo amigo violonista, hoje finado, penso nele quando começo a estudar uma partitura, não ser ortodoxo é também criar sua própria linguagem.

A colocação de Cioran na época não havia me tocado, porém acho que a entendi no que diz respeito à partitura, sua leitura e a visão pela qual intérpretes de origens diferentes tocam a mesma música não sendo ela a mesma devido à nacionalidade de determinado compositor. Pela frase enigmática nota-se que gostava das leituras “clássicas” tinha vários volumes de Cioran, inclusive no meu caderno de teoria musical ela escreve em de Abril de 2004 uma citação do mesmo: “A música é o refúgio das almas feridas pela felicidade”. Livros de Proust, Balzac, Hegel, Kant, Goethe, Descartes, Camus, Hemingway, Steinbeck, Fitzgerald, Faulkner, Tennessee Williams, Khalil Gibran, entre outros que não decodifico o nome estão acondicionados em uma prateleira, também há uma foto de sua mãe cujo semblante lembra muito o dela, com a diferença de que seus cabelos são mais cumpridos e tingidos de preto, pinta mensalmente, a lâmpada da sala é incandescente, amarelada, bate no reflexo das folhas de plástico das pastas, então se tira as partituras das mesmas para poder ler e fazer alguma anotação, as venezianas estão sempre fechadas, há uma mesinha de centro com um cinzeiro limpo e três cachimbos empoeirados, um bloco de notas promissórias como comprovantes de pagamento para que depois sejam declaradas no imposto de renda dos pais dos alunos, pendurados acima do piano está um relógio parado, onze horas e dezesseis minutos, assim como seus dois diplomas do Conservatório Rio-Grandense de Música, Teoria: 9, Prática: 9,5, não teve filhos, ao lado do teclado do Fritz Dobbert havia um lápis preto nº 2, uma borracha de cor azul e vermelha, usava sempre a parte vermelha da borracha para apagar erros dos exercícios dos cadernos de teoria, e um pacote de halls preto, no inverno colocava uma estufa perto dos pés, era barulhenta e não muito eficiente, a sala seguia gelada, o que esquentava era o movimento feito com os dedos, braços, antebraços, corpo teso, usava pantufas pretas de lã por dentro, acima da lareira havia um mini system e vários CDS, dos clássicos aos nativistas além é claro dos tangos e boleros. Deu-me um par de meias de lã que ela própria fizera de cor cinza, a da minha irmã, vermelha.

Nervosismo, tragédia, melancolia, dor, alegria, sucesso no recital. Quem faz o protocolo comete a gafe de falar Chopin assim como se fala “Shopping”. Se sente o espanto do público como se tivessem sido tragados por uma onda e os afogasse. Corrigida a gafe após as apresentações e todos em terra firme vou carregando o banco do piano Fritz Dobbert, pois banco do Essenfelder, assim como o próprio Essenfelder era detestado pela professora Salime, acredito que nunca fora afinado e regulado, hoje em dia encontra-se abandonado no foier do Centro Cultural, ela balbucia algo ao marido:

— Não pode misturar-se com essa gente.

Anos depois nos reencontramos, toco La Cumparsita com Seu Hugo, que devido ao câncer não mais falava, fazia cinco anos que se alimentava por sonda. Chamou minha atenção estalando os dedos em frente ao seu órgão para que eu tocasse no tempo certo, professora Salime estava acompanhando o dueto junto com minha avó Bernardina, ela tirou fotos para registrar o momento, professora Salime na minha direita com meu braço envolto nas suas costas encostando a mão em seu ombro e Seu Hugo ao lado esquerdo, seguro com a mão esquerda um livro com peças de Chopin e a posiciono na frente do meu peito, professora Salime segura com a mão esquerda os dedos da mão direita, parece que as aperta, Seu Hugo com os braços retesados com a mão esquerda segurando o pulso da mão direita, ambos usam roupas de lã. Antes vó Bernardina tirou outras fotografias, o momento em que Seu Hugo chama minha atenção, estamos os dois posicionados em seus respectivos instrumentos, eu no piano, Seu Hugo no órgão, outra fotografia é a execução da peça, estou com a boca semiaberta de perfil, Seu Hugo aparece de costas. Tinha uma lista de três laudas dos nomes das músicas que tocava datilografadas na cor vermelha, tocava as melodias somente com o dedo médio, indicador e polegar da mão direita. Toda técnica que aprendi com professora Salime não era páreo para o ouvido absoluto de Seu Hugo. Em um dos recitais tocamos “Que Será Será”, ele no acordeon e eu no teclado. Fui até a outra sala despedir-me de Seu Hugo após o tango, estava sentado na sua poltrona, o suporte para sonda estava ao seu lado esquerdo ligando-a em seu nariz através de um cano, apertei sua mão, desejei melhoras, ele baixou os olhos, franziu o cenho, resmungou e com a mão direita fez um aceno. “O futuro não é nosso para vermos.”

Em outra ocasião, já sem Seu Hugo no plano terreno e professora Salime caminhando a passos curtos e coluna arcada, fomos eu e minha irmã visitá-la, quando toquei a Terceira Sinfonia em Fá Maior nº 3, Op. 90 de Brahms ela fez: “Oh!”. Disse que voltaria a tocar. No seu velório toquei as suas mãos e lembrei-me das mãos do meu avô, gélidas, algo banal nessa condição, porém eram patrícios, tinham sua linguagem própria.

Gustavo Michels Chein é Bacharel em Administração pelo IFFar. Vive em Júlio de Castilhos onde ministra aulas de piano/teclado no Centro Cultural Álvaro Pinto.

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2 comentários sobre “Professora Salime”

  1. Arthur Appel Junior disse:

    Perfeito Gustavo, tens a sensibilidade de contar a história inserindo o leitor pouco a pouco no interior do teu pensamento poético! Parabéns!

  2. Elisandra Jacobsen Gomes disse:

    Belas palavras, pude sentir como se estivesse presenciando cada momento desta leitura. Possuí muito afeto e encantamento em cada detalhe, sinto- me honrada por poder compartilhar com o professor Gustavo o amor pela música.

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