ESTRANGEIRO
E a noite com seus gumes, pleno animal em chamas, não nos devolve
aos dias que não conhecemos
A pedra anônima
a embrutecer o peito não nos deixa escavar para alcançar a manhã
Esse lugar apartado,
habita-me
como o ventre da baleia que engoliu Jonas
Passageiro indomável, desertor de todas as paisagens,
nenhuma Nínive
acolhe-me do vasto pesadelo, nenhum peixe
devolve-me às vísceras do sonho
§
ANTAGONISTA
A palavra é a fogueira
a queimar todos os horrores nessa paisagem sem piedade nem remorsos.
Atravessando desertos & blasfêmias,
o poema não se submete ao engano das miragens:
rio que atravessa
o mais fundo exílio, espera o estuário, para libertar-se
das margens opressoras,
interroga o insondável que o espera,
seta antagonista
com sua atroz verdade,
arremesso contra a ferrugem do tempo
§
A VIDA NÃO TEM MÉTRICA
Matéria inabitada,
o futuro não sabe nada de nós, assim como reclamamos do passado aquilo que a memória sabotou
em nossos corações esquivos
Pisamos o presente
como se fosse nossa dízima periódica, esticamos as cordas para medir os desenganos;
e o resultado é nunca absorver o mínimo de nossa máxima fugacidade.
Na autópsia do instante, fósseis de um tempo natimorto povoam as vísceras do pranto.
Ronaldo Cagiano formou-se em Direito e foi bancário da Caixa Econômica Federal, tendo vivido vinte e oito anos em Brasília e dez em São Paulo e está radicado há três em Portugal. Autor de O sol nas feridas (Poesia, Ed. Dobra, SP, 2013 – finalista do Prêmio Portugal Telecom 2013), Eles não moram mais aqui (Contos, Ed. Patuá, SP, 2015 – Prêmio Jabuti 2016), publicado em Portugal pela Ed. Gato Bravo, 2018; Observatório do caos (poesia, Ed. Patuá, SP, 2016), Diolindas (romance em coautoria com Eltânia André, Ed. Penalux, SP, 2017) e Os rios de mim (poesia, Ed. Urutau, Pontevedra, Espanha, 2018), entre outros.