hipótese de abril
exatamente por que é dezembro
chove não chove esquenta esfria
não tem fim este mês apócrifo
como aquela tardinha errada
que fingia ser de uma sexta-feira
e era — sem dúvida — de segunda
não tem fim este espelho onde
mais uma ruga nos sobre/assalta
aos poucos somos o contrário de nós
enquanto os dias teimam & voltam
não tem fim esta espera pela festa
o bolo os balões os vivas os votos
tudo tão eclesiasticamente enfadonho
que nos estraçalha nesta data querida
§
exumação
da tia freira, compassado:
o marca-passo 5 anos depois
tum-tum tum-tum tum-tum
da prima vera:
a peruca e as unhas postiças
da cunhada ciça:
três dentes de ouro
do tio ricardo, cego:
duas nódoas azuis
do avô, poeta:
o pó
§
emaranhados
o tempo o verbo o verso & o reverso: o tempo
os anjos as feras os vermes os seres humanos
a merda o fel a lepra o ovo a clara & a gema
a dracena a verbena a begônia & a calêndula
o tempo: senhor da ação: adormece cicatrizes
devoraignora a memória que o tempo não sara
o tempo: um deus surdo & vingativo: o tempo
[a palavra: esse coágulo no peito & na língua]
§
um, dois, três e já
posso abrir os olhos:
a família empilhada
em volta do bolo
o churrasco na brasa
as garrafas os copos
os pratos que terei
de lavar amanhã
cheguei aqui apesar
das pálpebras caídas
da vista ferida de
caladas dores sob
o sol
posso abrir os olhos:
e saber a hora de
dar nos nervos
dar um tempo
dar na telha
dar um fora
dar o pira
§
pavor
pavor de bombas que caem do céu como estrelas venenosas
pavor de correr entre elas as estrelas
pavor de prédios que se desmoronam pedra sobre pedra
pavor de ser atingida por elas as pedras
pavor de não acabar a faculdade
pavor da morte por inanição
pavor de ser atropelada a surpresa o susto a dor
pavor de perfurar o tímpano
pavor da morte prematura sob tortura
pavor de nunca mais beijar a sua boca
pavor de ser metralhada na fila do feijão
pavor de harmonia facial boca de pato
pavor de não amar ao próximo
pavor de ser o próximo
pavor de dormir pavor de acordar
pavor de não sentir de novo suas mãos nos meus cabelos
pavor de ver vidas explodirem na tevê em cores como um super gaza bros
pavor da indiferença do mundo: até quando?
pavor da cegueira [conveniente] do mundo: até quandos?
pavor da ganância dos genocidas: até quantos?
pavor de perder a memória os olhos os dentes os dedos
pavor de sentir pavor
pavor desta vida
pavor de morrer à toa baldadamente
pavor desta vida
já disse?
[à moda de raymond carver, em “medo”]
§
folhetim
meus seios de 2019
as flores gentis de abril
o clarão atrás das montanhas
meu peignoir castanho
o vento ao redor
a neve cintilante em praga
os pardais nos meus pulsos
a minha risada estrondosa
as pontas dos dedos sobre meu torso
o mapa das minhas veias
a explosão do espumante
versos no embaçado do espelho
os dias inteiros em um único poema
o cheiro da chuva na pele da manhã
o ardume que habitava meus ossos
antes dessas guerras
o fogo que dançava
nos meus olhos-ninhos-de-passarinhos
o nome que eu tinha
antes de ser esquecida
quem me roubou: devolva
e me diga: ainda dá tempo
Silvana Guimarães nasceu em Belo Horizonte/MG, onde vive. Escritora, é formada em Ciências Sociais pela UFMG. Editora da Germina — Revista de Literatura & Arte e do coletivo Escritoras Suicidas. Revisou e organizou incontáveis livros de poesia alheios. Participou de várias antologias poéticas nacionais e estrangeiras. O corpo inútil, no prelo, é o seu primeiro livro de poesia.
Parabéns, braSIL! Você e sua poesia, especiais para todo sempre, amém!