Por Lucio Carvalho,
para a Especiaria.
Entrevistamos Silvana Guimarães e Fabrício Marques, organizadores da Poesia Reunida [1996 – 2009] de Maria do Carmo Ferreira para a Especiaria. A trilogia foi lançada em novembro passado, em Belo Horizonte, e abrange 43 anos de uma produção que iniciou em 1966, no Suplemento Literário Minas Gerais e foi interrompida em 2009. Aqui, eles contam um pouco mais a respeito do que encontraram e do seu trabalho com a poeta.
Especiaria – A publicação de uma obra que atravessa gerações e que impressiona pela extensão e apuro de seleção nos deixa curiosos em relação à forma pela qual se deu o trabalho de organizar um material tão rico e diverso. Gostaria de começar indagando do trabalho de vocês, como organizadores da trilogia. Até que ponto os originais da poeta estavam organizados para a publicação? Qual a participação dela nesse processo? Houve encontros entre vocês, acertos, desacertos? Quanto tempo durou esse processo, desde que Maria do Carmo tomou a decisão da “estreia” em livro?
Silvana Guimarães – Os originais não estavam organizados. Na verdade, estavam até bem desorganizados. É certo que ela montou o livro que, nos últimos anos, queria publicar e se chamaria Cave Carmem. Mas em 2009, Carminha abandonou a internet e se desfez do computador. Antes disso, ela havia perdido todos os seus arquivos e como sabia que eu juntava seus poemas, pediu que eu enviasse tudo para ela. E foram esses — ao lado dos que foram publicados no Suplemento Literário de Minas Gerais (SLMG) que a gente usou para compor os três livros.
A participação da poeta foi relativamente pequena, a maior parte por telefone e pelos Correios (todos os poemas foram impressos e encadernados para que ela conferisse os que sairiam nos livros). Muita coisa foi resolvida pelo WhatsApp com o sobrinho dela, que é seu tutor e colaborou muito com o projeto.
Grande parte dos poemas foi copiada em Bloco de Notas, de modo que isso exigiu uma revisão mais severa, inclusive para adequar as palavras ao Acordo Ortográfico de 1990, a pedido da poeta.
Fabrício Marques – Eu já havia feito uma entrevista com Carminha, publicada no SLMG no ano 2000. Um pouco antes disso, ela chegou a me entregar o livro Cave Carmem (que é diferente do homônimo que compõe a trilogia publicada agora) para ser publicado pela editora DuBolso, do poeta Sebastião Nunes, mas na hora H, recuou. Por volta de 2005, perdi o contato com ela, só retomado em 2020/21, quando, graças à Silvana, Carminha fez um convite duplo, para Silvana e para mim, a fim de organizarmos a publicação de sua poesia. Este era o combinado: ela só aceitaria a publicação se a organização fosse feita por nós dois. O curioso é que não conhecia pessoalmente a Silvana. Mas a partir do convite, unimos forças e tudo deu certo.
Especiaria – Há muitas coisas impressionantes nos livros, guinadas temáticas, a forma que é conduzida por um senso de liberdade criativa muito peculiar. Vocês entendem que a reclusão voluntária da poeta favoreceu o desenvolvimento de uma poética que é um pouco sem par no cenário brasileiro? Quer dizer, não se consegue ajustá-la inteiramente a um movimento ou tendência, mas, ao mesmo tempo, ela parece perpassar o que se desenrolou no país desde a poesia concreta, mas mantendo os seus critérios. Para vocês, a que se deve essa dicção tão particular? Seria um projeto pessoal, um traço de sua personalidade?
SG e FM – Acreditamos que essa dicção particular se deve ao profundo conhecimento da linguagem poética, criatividade e ousadia da poeta. Sim, a poesia de Carminha foi tão ousada até 2009, quando ela parou de escrever, que permanece contemporânea nos dias de hoje. O arrojo sobressai-se. Repetindo o que a Silvana Guimarães disse no posfácio dos livros: “Uma poesia carregada de assombros e reflexões, que oferece itinerários incoerentes ao leitor. Para o céu ou para o inferno. Um trabalho quase secreto, iniciado em meados dos anos de 1960 — com os poemas ‘Enigmas’ e ‘As posses do papel’, publicados, respectivamente, na revista Mural, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFMG, e no Suplemento Literário de Minas Gerais —, parado desde 2009 e, entanto, espantoso”.
A poeta não pretende escrever mais. Entretanto, seu sobrinho recuperou um arquivo que ela montou com alguns poemas inéditos. Há também quatro livros de poesia infantojuvenil, que deverão ser publicados.
Especiaria – Como já foi relatado em outras matérias jornalísticas, Maria do Carmo encontrou na “onda” dos blogues do começo dos anos 2000 um meio de voltar a divulgar o seu trabalho, o que parece ter-se interrompido desde a sua maior exposição no Suplemento Literário MG, mais ou menos na mesma época. Logo ali, entretanto, decide parar sua produção. O que vocês podem dizer a respeito dessa determinação? A fase final da sua produção parece muito vinculada às temáticas religiosas e metafísicas, há alguma relação entre uma coisa e outra?
SG e FM – Sim. Em 2009, Carminha passou a concentrar sua fé na religião. Ela afirmou isso com todas as letras. Trocou o fazer poético pelo culto a Deus e os santos. E percebe-se que o fato de ser inédita passou a fazer parte oficial da sua biografia. Em uma entrevista concedida ao Fabrício Marques, sobre a importância da publicação de sua poesia no SLMG, ela respondeu que sentia uma satisfação pessoal, mas: “enquanto eu continuo inédita, o que vale dizer: absolutamente desconhecida. Em duas minibiografias que ela enviou para acompanhar seus poemas na Germina — Revista de Literatura & Arte, ela informou:
“Continuo inédita. Nem livros, nem amores, nem árvores, salvo as que vejo da minha varanda: verde-sem-mar”.
E, ainda:
Biobibliografia
maria do carmo ferreira, *38.
Cataguases, Minas Gerais.
Solteira, inclusive em livros
(perícia: engaveta inéditos).
Vaga em revistas/jornais.
Especiaria – Por fim, gostaríamos que dissessem o quanto possível do que os leitores poderão conhecer de sua poesia com os livros e de qual lugar que a poeta passa a ocupar com sua publicação, dado que parecia ser desconhecida de muitos, mesmo entre leitores experientes da poesia brasileira.
SG e FM – A trilogia reúne quase a totalidade da produção poética de Maria do Carmo Ferreira, ou uma parte substancial dela. Portanto, os leitores poderão conhecer as principais linhas de força dessa poesia. Sobre o lugar que ela passa a ocupar, é preciso dizer que a poeta, embora inédita em livro até o final do ano passado, publicou um número considerável de poemas, sobretudo no SLMG, e com isso foi se fazendo conhecida, ainda que por um pequeno número de leitores, que passaram a admirá-la desde então. Agora, com a trilogia, certamente ela alcançará um público maior, que reconhecerá ali uma das vozes mais originais da poesia brasileira no século 20.
Agradecemos a atenção e interesse da Especiaria, desejando-lhe vida longa e produtiva no cenário da literatura brasileira.



Auto-retrato
Nasci no rame-rame das abóboras.
Meu plano é horizontal. Vivo de cócoras.
Se me ergo, me espatifo. A gravidade
colou meu ser ao chão: cresço à vontade.
A crosta é dura. No corpo volumoso
a polpa é só fartura e paga o esforço
de rastejar como uma tartaruga
e refletir ao sol minha armadura.
Uma fome objetiva me devora
como a dos porcos que não comem pérolas
ou a dos pobres que não comem porcos.
Com ou sem sal, metáfora ou pletora
viro alimento no momento justo.
Ao fogo brando e lento mais me aguço.
Não sinto a tentação das ramas altas:
maracujá, chuchu, nada me exalta.
Nem mesmo a solidão das uvas verdes
quando o desdém dos homens as prescreve.
No ventre universal ocupo um espaço.
A vida faz-se em mim. Vegeto, e passo.
…
01/09/2000
Leia mais poemas de Maria do Carmo Ferreira na Germina,
na Escamandro e na Germina outra vez.