Tércia Montenegro
Fortaleza – CE
É sempre ao entardecer que as crianças se aquietam. Mergulham nas primeiras sombras da noite, solenes de mistério. Desconhecem as próprias mãos, que tateiam superfícies, descobrem gestos.
Um gato se enrola debaixo da mesa, pardecendo devagar. O ruído de talheres se amiúda para a ceia – choque de garfos, fininho; o som dos pratos e das conchas revolvendo a sopa. Só depois vem o cheiro, quando a fome já entrou pelos ouvidos.
Na velha casa, as noites pareciam mais densas: erguiam-se como igrejas, maciças, antes de invadir a sala, os dormitórios. Forçávamos a passagem pelo escuro, como alguém que empurra uma porta. Os passos avançavam pouco a pouco; o simples ato de partir um pão fazia o ritual: dedos abrindo espaço no ar, naquela textura de contorno indefinido, enquanto os olhos se encontravam a custo, turvados pela luz das velas.
O rosto de minha avó. Branco, o rosto inteiro e os cabelos cobertos de nuvem – as rugas suaves como um desenho incompleto que eu tentava descobrir, quando era dia. Sentava-me no seu colo: bem perto de mim, as linhas de mistério, traçadas em teia.
Outra face, a de Bertina: nela se via o sombreado das noites avançadas. Tão gorda, tão farta no seu corpo exagerado – dava medo às crianças olhar para cima. Feito uma estátua que ameaçasse cair sobre nós, Bertina, tão contrária de todos. A família inteira era exatamente como a avó: aquela alvura meio doente, fantasma passando discreto, frágil de carnes, parco de voz. Por isso ainda olhávamos Bertina como se fosse a primeira vez, estranhando-a. Temíamos sua largura extrema, as mãos negras e ágeis carregando pratos.
Eu costumava demorar na cozinha, após a ceia. Ficava olhando as panelas amassadas, o café que se coava num pano gasto. O pilão feito um brinquedo de quebrar grãozinhos. Bertina passava por aqui e por lá, e eu não saía do canto, recolhendo o susto. As sandálias de borracha brilhavam de claras, palmilhando o cimento. Carregavam aquele corpo imenso, vindo e se afastando, rompendo as trevas como quem sai das águas.
O quartinho era logo ali, a poucos metros do quintal. Paredes amarelas e granuladas, rede cruzando lados opostos. O baú, o rádio — coisas de Bertina. Mais adiante, nos fundos da casa, ficava um terreno esquecido, onde sc cultivavam rosas. As flores se desfaziam ao menor contato — uma brisa era suficiente para dissipá-las, fragmentadas pelo chão úmido.
Sempre associei aquela imagem de rosas murchas à própria velhice, poeira espalhada pelos cantos feito sementes de morte. E os coelhos, também: vovó certa vez comprou dois coelhos. Eu, que sonhava ter um daqueles bichinhos de nariz inquieto, vi, trancados numa gaiola, dois bonecos de pelo encardido, a custo respirando. Perguntei por que estavam doentes; disseram que não havia doença nenhuma, eram apenas coelhos antigos. Ficaram lá, presos e inúteis, sujando-se de urina, durante não sei quanto tempo. Eu desesperava por vê-los fora, andando pelo quintal, roendo flores. Um dia, acabei por não pensar mais neles, fugindo da tristeza que me davam. Quando percebi, tinham desaparecido da gaiola — decerto morreram, de patinhas duras, cruzadas.
Bertina, nessa época, foi meu consolo. Conversou comigo, criando histórias absurdas que ela achava muito engraçadas. Ria gargalhadas brutais, olhos apertados no rosto. Esqueci as rosas e os coelhos, para recolher de novo o espanto. Dava medo pensar que Bertina um dia fora criança como eu…Teria sido uma garotinha de tranças e vestido xadrez? Em que ponto da infância as pessoas se deformam, inflamam de prazer e vida? Bertina se arredondando, balão de corpo e de seios, riso de giganta. Eu tremia de medo – e corria para me juntar ao espalhafato das outras crianças.
Depois, tornei a buscá-la. Ficava na cozinha, tentando me acostumar com aquela mulher. Após a ceia, o rosto de minha avó ainda luzia de brancura na sala. Eu olhava meus pés muito pálidos sob a mesa, esperando o instante de levantar. A noite então já se infiltrava na casa, feito poeira de pétalas. Ficava denso, o ar, e logo todos estaríamos andando passo a passo, na escuridão maciça. Só Bertina avançava livre, de sandálias ágeis.
O quartinho, nacarado, lembrava uma concha fria. Imagens de santos pelas paredes: desenhos que se destacavam como retalhos de luz no escuro; principalmcnte um de anjo, branquinho, tocando flauta. Poucas vezes entrei ali, e mais por distração, seguindo o fio de uma conversa iniciada na cozinha. Bertina geralmente era quem falava – eu ficava só escutando suas histórias de bichos estranhos cm países encantados. Quando entrava no quarto, buscava essa hipnose de fábulas, que ninguém mais poderia criar.
Não que Bertina parecesse incomodada; eu que evitava devassar aquele canto da casa. Queria conservá-lo misterioso como a mulher que o habitava. O baú fechado talvez estivesse repleto de roupas, retratos de família, entre toalhas e perfumes. No armário, o talco que certa vez Bertina espalhou pelas coxas, pulverizando-se naquela estranheza de cor clara — um pecado, pensei, ela se embranquecer, que era feito se quebrasse, partisse frágil o seu corpo compacto, agora lembrando o corpo de minha avó, tão passarinho. Mas o vestido logo se baixou, cobriu as pernas. O talco foi para o armário, devia ainda estar lá.
Abaixo da janela, ficavam os outros móveis: cômoda e cadeira, que se descombinavam na cor. A cómoda era de madeira clara, carunchosa — sobre ela, um pente largo, o rádio e a imagem de São Francisco. Bertina gastava horas rezando, se era reza, aquele olhar parado no rosto, vez e outra tomando a estatueta nas mãos, como se quisesse brincar. Os dedos seguiam o contorno do boneco — cabelos pintados na cabecinha de gesso, assim como os olhos, nariz e boca. São Francisco se escondia nas pregas duras do trajo marrom, mas Bertina se guiava pelo tato c pelo cheiro — porque também perfumava o santo: todos os dias era um borrifo de lavanda, antes do ritual de olhares e gestos.
Eu achava estranho aquele jeito de rezar, principalmente quando o rádio estava ligado — então me parecia impossível alguém se concentrar num pai-nosso que fosse. Nunca pude ver a expressão de Bertina, nesses momentos. Ela ficava de costas para a porta, sentada na rede. O sol da manhã lhe caía no rosto, e ela devia murmurar qualquer coisa que não se escutava.
A voz do locutor era interrompida vez e outra por músicas tristes. A Rádio Nacional mandava novas de gente perdida por todo canto do país — depois eu soube disso. De serras e garimpos, mar ou sertão, chegavam notícias, cartas lidas em público. Cada mensagem, um sinal de desencontro, de pessoas distanciadas. Dois nomes – de Fulano para Beltrana — e o recado pela voz eletrônica.
Talvez Bertina rezasse por alguém. Talvez rezasse por todos, pela multidão de pares separados, tanta gente incompleta no mundo. Eu pensava que ela tinha bom coração, apesar de tudo. Ela poderia ter salvo os coelhos da gaiola, se quisesse: vovó nem saberia, não chegava mais ao quintal. Poderia também cuidar das rosas para que não se destruíssem ao vento. Não fazia nada disso, Bertina, mas já devia ter muito serviço. As vezes se distraía, ficava muda, esquecendo uma história pela metade. Cansava-se: não era mais tão jovem, dizia, embora continuasse com os mesmos passos rápidos, indo e vindo no seu porte imenso.
Quando vovó ficou doente, todas as crianças da casa estiveram quietas como se fosse sempre noite. Bertina me evitou um pouco, deixando que eu dividisse solidão com outros de minha idade. Lembro que fiquei triste, pensando que ela realmente envelhecia, perdera seu riso espontâneo. No quarto de janela aberta dia c noite, Bertina rezava, segurando o santo.
As refeições tornaram-se ainda mais solenes e calmas, com o desequilíbrio na composição da mesa. Evitávamos olhar uns para os outros, tentando não perceber aquela falta, o vazio na cabeceira. Manchas negras de sombra, no lugar onde ficava a avó. O ar cada vez mais pesado, como se fosse de massa, parecia suspender por um instante os farelos de pão antes que caíssem sobre a toalha. Grãos de casca e miolo dispersos no quadriculado azul, feito um jogo.
Quando vieram me dizer que Bertina partiu, custei a acreditar. Mas o quarto amanhecera sozinho e imenso. As paredes amarelas ainda estavam cobertas por imagens, o anjo continuava a tocar sua flauta. Armário, cômoda e cadeira no lugar de sempre, mas agora tudo vazio. Restaram o rádio e o santo, como resquícios — de modo que por muito tempo pensamos que Bertina fosse voltar. Ficava presa à casa, deixava coisas, um pouco provisório de si, enquanto não vinha toda.
Eu, principalmente, não quis aceitar a verdade. Sem motivo nem palavra, aquela ausência repentina, os objetos largados como simples lembranças. Vovó também deixara as suas, ao morrer: roupas, cartas e livros que não traziam segredos, porque com a velhice vem a transparência, já não resta nada a se dizer. As lembranças de vovó foram todas embaladas, escondidas por pacotes que seriam doados para a caridade, dissolvidos em algum lugar. A própria casa se fez sombria demais para os que ficavam, e não demorou para os adultos pensarem no exílio, outras paredes, com janelas e portas por onde, enfim, entrasse a luz do dia.
Ninguém percebeu a falta do santo sobre a cômoda: ia comigo, entre meus brinquedos, no doce cheiro de lavanda. Bertina envelhecia, agora longe de nós – tinha partido, seguindo notícias reais ou inventadas, carregando sua rede e seu baú. Para o garimpo, a serra, o mar ou o sertão, buscava qualquer coisa ainda incerta, de Francisco para Bertina. E ela rompia distâncias com seu corpo largo, saía da noite como quem sai das águas – rezava, talvez em silêncio, ou falando alto, que sua voz já não se podia escutar.
O estilo de Tércia caminha por vezes próximo ao tom nostálgico, especialmente quando o narrador está na velhice. Mesmo na dureza das cenas, as descrições não deixam de contar com uma visão poética e crítica desta etapa da vida. A autora busca desvendar sempre, sem, contudo, deixar ver a plenitude, de tal forma que o tempo siga escapando. O corpo, subscrito nas marcas do tempo, é textualidade e enigma, como o da avó do conto “Transparências” (LF) (…) A delicadíssima descrição memorial e sensorial da neta, em frases sempre curtas, como versos, é forma típica da maioria dos contos do livro Linha Férrea (…) Lúcio Flávio Gondim da Silva. In: Silva, Lúcio Flávio Gondim da. Corpo de conto: anatomia provisória de Tércia Montenegro. Porto Alegre: Zouk, 2023. |
Tércia Montenegro nasceu em 1976, em Fortaleza. É professora adjunta do curso de Letras da Universidade Federal do Ceará. Publicou os livros de contos O Vendedor de Judas (prêmio Funarte 1997/ seleção do PNBE 2008), Linha Férrea (Prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira – Revista Cult, 2000) e O resto de teu corpo no aquário (Prêmio Secult-CE, 2004). Participou das antologias 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Rio de Janeiro: Record, 2004), Contos Cruéis e as narrativas mais violentas da literatura brasileira (São Paulo: Geração Editorial, 2005), Contos de agora (São Paulo: Livro Falante, 2007), Quartas Histórias e contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa (Rio de Janeiro: Garamond, 2006) e Capitu mandou flores (São Paulo: Geração Editorial, 2008). Sua bibliografia ainda conta com diversos livros infantis e juvenis. Transparências é um conto publicado em 2001, na primeira edição de Linha Férrea. Em 2021, a editora a editora Grua publicou uma edição comemorativa do livro (ver aqui).