POESIA

Um cão à passagem (excertos), de Mar Becker

Imagem: Masao Yamamoto
Imagem: Masao Yamamoto

ele vai na frente, o cão. e posso soltar a guia, não corre

olho pra baixo e vejo a ponta que arrasta ─

é um cão com um caminho abrindo-se para o azul

.

venho alcançando mais teu corpo nos últimos dias, e ele é surpreendentemente leve. um dos absurdos de amar: em mim, teus testículos tumorígenos pesam ambos uma pétala

e me olhas desfeito e doce, e é negro o teu interpelar

.

agora te pareces a uma catedral gótica: mas há um dente-de-leão no meio dela, e que se inclina à ventania

.

[descobri que ele é surdo: não faz alarde, não o percebemos no tempo ─ não late, não rosna, não olha quando chamado. assemelha-se mais à levitação do antúrio no ar, a pose uma haste disputando com o vento sobre quem guerreia com mais suavidade]

.

a teu modo, és feroz no entanto ─ como é feroz um livro tocado pelo sol da meia-noite

.

por coincidência, mesmo antes de saber da surdez, nunca usei muitas palavras (como pressentisse que seriam inócuas aqui), desde o começo ─ e gosto disso. gosto da ideia de que já começamos com duas camadas de silêncio guarnecendo essa presença. dormes melhor abrigado assim: comigo muda, contigo surdo

.

como os cães, deitar pesando para o mesmo lado o coração e o uivo

Mar Becker nasceu em Passo Fundo (RS) e mora em São Paulo (SP). Autora de “Cova profunda é a boca das mulheres estranhas” (Círculo de Poemas/2024), “Canção derruída” (Assírio Alvim/2023) e outros.

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