ele vai na frente, o cão. e posso soltar a guia, não corre
olho pra baixo e vejo a ponta que arrasta ─
é um cão com um caminho abrindo-se para o azul
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venho alcançando mais teu corpo nos últimos dias, e ele é surpreendentemente leve. um dos absurdos de amar: em mim, teus testículos tumorígenos pesam ambos uma pétala
e me olhas desfeito e doce, e é negro o teu interpelar
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agora te pareces a uma catedral gótica: mas há um dente-de-leão no meio dela, e que se inclina à ventania
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[descobri que ele é surdo: não faz alarde, não o percebemos no tempo ─ não late, não rosna, não olha quando chamado. assemelha-se mais à levitação do antúrio no ar, a pose uma haste disputando com o vento sobre quem guerreia com mais suavidade]
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a teu modo, és feroz no entanto ─ como é feroz um livro tocado pelo sol da meia-noite
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por coincidência, mesmo antes de saber da surdez, nunca usei muitas palavras (como pressentisse que seriam inócuas aqui), desde o começo ─ e gosto disso. gosto da ideia de que já começamos com duas camadas de silêncio guarnecendo essa presença. dormes melhor abrigado assim: comigo muda, contigo surdo
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como os cães, deitar pesando para o mesmo lado o coração e o uivo
Mar Becker nasceu em Passo Fundo (RS) e mora em São Paulo (SP). Autora de “Cova profunda é a boca das mulheres estranhas” (Círculo de Poemas/2024), “Canção derruída” (Assírio Alvim/2023) e outros.