Valdomiro Silveira
Senhor Bom Jesus da Cachoeira – SP
(História toda contada por um Luís Panga, que aprendeu
certas palavras difíceis na escola do Jerônimo.)
Afinal, o Pedro Mariano sempre fora um espeloteado, diziam todos. Desde catatau, pecurruchinho ainda, já se enfezava por qualquer dá-cá-aquela-palha, e ninguém podia aturá-lo: ficava endemoninhado, Deus nos perdoe! — e falava cada palavrão, cada xingamento que até doía nos ouvidos de quem o escutava. Então, p’ra mandar um parceiro a partes rúins, como ele, nunca se viu em tão pequena idade. Cresceu, foi crescendo; quando ‘garrou os doze anos, o gênio deu de abrandar, serenou um tiquinho; depois, assim que os primeiros fios do buço lhe apontaram, principiou a ser macambúzio, andava mexe-mexendo sozinho pelos lugares mais longes e soturnos, pela Estiva, pelo Jardim, pelo Tambú, que nem alma penada.
Muito moço e muita moça tinham dó do pobre, tão bonito e sacudido, que por fim pegou a amarelar e pender p’r’a frente, arcando o pescoço, afundando o peito, sumindo pouco a pouco. Houve um tal João Cacheado, cabroche pernóstico e contador de histórias antigas, que chegou a dizer, uma vez que proseavam naquela vendinha de p’ra lá dos Lázaros, ao ir ele passando:
— Olhem vocês o que é um pai não ter juízo!
Si não fosse o Mariano ali dos Papagaios andar toda a vida de cascos virados, bebido feito uma cabra, havia de ensinar o filho na lei do trabalho e da corage’, e o Pedro não teria esse jeito sorumbático e saberia agarrar-se ao rabo do guatambú. Mas dentro, na cozinha da casa, estava de passeio um bando de moças, porque era o dia da festa de Nossa Senhora das Dores: e uma china chibante, ouvindo a prosa da venda, ficou de calundu, na mesma hora, pois não gostou que botassem a tirana no outro, um rapaz que arrastava a sua vida p’r esses matos fora, sem estrovar nem apoquentar ninguém. As outras, cochichando e rindo numa toada, piscavam-lhe os olhos meio de banda: já era muito sabido, nesta cidade inteira e até nos bairros, que a única pessoa no mundo a quem o Pedro Mariano queria bem era aquela mesma china, por nome Valência.
O Pedro granou, fez-se gente e, quando todos pensavam que ele um belo dia pitasse macaia, de amarelão ou de héctica, justou-se como zelador do cemitério, onde passava de sol a sol no meio das catatumbas, assobiando que não tinha parada, descendo os defuntos p’r’o fundo dos sete palmos de terra, e cuidando, com toda a paciência, dos suspiros e das perpétuas plantadas em roda das sepulturas. E podia ser verdade ou mentira, mas o povo falava à boca cheia que, dês que ele se empregou naquele serviço, a gente que morria era de mais — uma rasoura.
A primeira vez que lhe acharam uma aduela de menos foi quando tratavam de enterrar uma criança, certo dia, p’r as onze da manhã, na conjunção da nova: encontraram-no a um canto da capela, reparando na cruz mais alta de todas, falando consigo mesmo e fazendo cada gesto de tristeza, que dava pena. Quem fora campeá-lo recuou pé ante pé, até o portão, e de lá gritou umas par de vezes, bem forte: ele voltou-se p’r’a banda do portão, fez c’a mão aberta e virada p’r’o céu sinal que esperassem, resmungou mais um eito, e depois é que foi enterrar a criança. Estava c’os olhos encovados de tudo e c’umas olheiras escuras em desmasia: coisa mesmo de assustar!
Apaixonou-se pela Valência, não era segredo p’ra ninguém. Mas quando ela soube, por notícia, da lavoura que ele levava, quando o viu catuzado daquele feitio, antes do tempo, deixou-o de cabo a rasto, não quis mais saber de candongas nem de lereias. E chegou a sonhar, uma triste noite, que ele a pusera à força num caixão azul, pregara-lhe as dobras do vestido branco, a tachas amarelas, no fundo do caixão, enterrara-lhe a grinalda de noiva na cabeça, a poder de alfinetes, e por último a pinchara a uma cova muito fria.
Daí por diante, então, foi que a Valência ficou intojada e com medo do Pedro: ora pudesse-se lá c’um home’ que tinha por obrigação e meio de vida os mortos!
Era tão banzativoo rapaz, que ninguém pôde saber si a nova do abandono da china o pôs mais amaguado ou não. Só, sim, o que todos souberam foi isto: quando, mais tarde, daí a uns meses, a Valência fugiu c’um cometa p’ra Goiás, e o Pedro teve conhecimento do causo, lá mesmo no cemitério, fez como aquele que não se importa de nada;porém logo que sumiu,pordetrásdas arves do cerrado, o vulto do levador da nova, o Pedro atirou-se p’ra cima de uma catatumba mais baixa e sem grades, e pranteou e saluçou como se lhe tivesse morrido alguém. O fiscal, que chegava, olhou aquilo, benzeu-se, foi-se embora — e ninguém mais não apareceu por ali, esse dia.
Foi então que rebentaram as primeiras febres. O povo, que já andava mesmo aprevenido, era só dizer que quem tinha culpa da mortandade não passavado Pedro Mariano. Poissinem bem ele entrou p’r’aquele serviço excomungado, nunca mais parou de morrer gente! Onde é que já se viu agora similhante coisa? Lugar sadio, como este, não se sabe que houvesse outro!
A Joana Curta, aquela que morava ali a parzinho c’a gente de seo João Carro, na rua das Flores, chegou a dizer que a epidemia era praga rogada por aquele garrote magro. A Joana Curta não tinha na boca mais dentes que uma galinha; por isso remexia os beiços, que nem dois pedaços de borracha velha, e esconjurava:
— Mas Deus ‘tá no céu, que olha por todos nós, e há de fazer que metade da praga cáia no rogador, como é de lei e justiça!
Morria povo, mal comparando, tal e qual formiga. Não acabava o sino de bater por um defunto, devagar, devagarzinho, já pegava a bater por outro, mais depressa, mais depressa, até que o toque dos mortos já parecia repique de festa, credo em cruz! Os que tinham alguma coisa de seu, lá iam meio arranjados p’r’o carro preto, depois de um terno de home’s de fora esborrifá-los de quanta água esquisita há; os outros, que morriam p’r o hospital ou p’r esses ermos, a carrocinha de pão vinha buscá-los, e, depois que os tais home’s os deixavam molhados d’uma vez, lá iam p’r’o alto da estação, toca-que-toca, sofrendo a birra dos cocheiros e o trote duro dos cavalos arrebentados. Tempo triste foi aquele!
O Pedro Mariano não dizia esta boca é minha: enterrava um e outro c’a mesma cara sem cor do mundo, os mesmos olhos bambos de peixe morto, o meneio do corpo sempre demorado e cansado. E os poucos filhos de Deus que se mostravam no cemitério, reparando no coitado do rapaz, pensavam lá consigo que aquele desinfeliz estava morre-não-morre, só de tudo, e não havia de ter, na última hora, nem um pedaço de taquara aceso na mão, quanto mais uma vela! — nem escuitaria um padre-nosso por sua tenção.
Ora, esses pensamentos sumiam logo: assim que os tais saíam dali e principiavam a conversar, caíam em dizer que era o Pedro quem chamava os defuntos, abrindo covas antes de tempo, antes de não ter ninguém morto, e por isso era até bom que desse a lonca sem tardar. Histórias! mauezas de cafumangos que não têm preceito e falam dos dentes p’ra fora.
Entre as pessoas que estiveram por uma dependura, contou-se a nhá Marcela, viúva do Neco ali do Bico do Pato, a qual nos derradeiros anos era moça dum carreiro da outra banda, um que passeava de vara ferrada p’r a cidade afora, apesar que bem-vestido e até pelintre. Nhá Marcela, assim que se viu nas toeiras, expectorando preto (como falavam) e sem vontade de comer uma asa de pinto, que fosse, lembrou-se da filha, a Valência, que a esse tempo andava por Uberaba, segundo era voz corrente, largada pelo cometa ao deus-dará. E mandou bater-lhe um telegrama, chamando-a às vinte, mas porém recomendando-lhe que viesse com bastante alcanfor e esses outros remédios catingudos que estavam muito em voga.
A Valência abriu-se, logo que recebeu o telegrama. Vinha dizendo p’ro caminho, a um moço de cabelo louro que viajava no mesmo trem de ferro, que não trazia medo de qualidade alguma porque, p’ra levar a vida que Nosso Senhor lhe dera, os últimos meses, era melhor até uns catorze palmos p’r o centro da terra, quanto mais sete! E nem bem o trem apitou, chegando à estação, ela saltou p’ra fora e olhou p’r a rua que vai até o espraiado, um estremecimento lhe passou pelo coração, porque não tinha visto, em quadra nem uma da vida, a Casa Branca tapera assim. É a viração do mundo: o que onte’ era doce devéra, amarga hoje; o que fora bom, fica rúim: e tudo volta ao que já foi… às vezes…
Ora, um dia, estava o Pedro Mariano sentado em riba duma pedra, rente mesmo co’a capela, por volta das quatro da tarde, [131] e escuitou que ia indo p’r’o cemitério aquela carrocinha preta que levava os pobres. Tinha já prontas umas par de covas, e levantou-se p’r’ajudar a carregar o corpo novo, porque afinal o acompanhamento dos defuntos, por então, era’ os poucos passarinhos que vivem no cerrado, como a cadorna e o saci. Quem foi agora na boleia já não era pessoa conhecida, que sim um vindouro da Mococa, por nome Antônio Cabeça.
O Antônio Cabeça era um tonto, a bem dizer, porque não se importava de nada nesta vida. Tinha um olho de menos, o direito, e um dedo de mais na mão esquerda. Falavam (maledicência do pouco povo que ainda restava aqui), falavam que aquele dedo servia p’r’auxiliar os outros cinco nos mutirões de passar o gadanho no que é dopróximo. Só pissuia de seu, além da roupa velha e remendada, um cabo de relho de guampa, que trazia encostado sempre, por sestro, quando conversava com alguém, na pestana do olho vazado. Entrou, viu o Pedro, e gritou-lhe:
— Ó seo coveiro, venha-me dar um reforço, que esta biraia tem muito pecado, pesa que é um Deus-nos-acuda!
O Pedro adiantou-se, c’um passo mesurado, segurou a moça p’r os braços, enquanto o Cabeça a conduzia p’r as pernas, e foram-na deitar sobre o monte de terra fresca ‘o pé da última cova aberta. E como o Cabeça estava meio tocado, pôs a ponta do cabo do relho na pestana, e pegou a cantar um verso lacaio, depois botou os joelhos na beirada da cova, e disse:
— Seo coveiro, decerto nós não podemos encomendar esta mundana!
Pois que vá p’r’o chão, que diabo! Se eu inzono muito aqui, já os defuntos lá da cidade ‘garram a chorar de saudades de mim. Bamo’ decidir co’ isto!
O Pedro ergueu a ponta do lençol que encobria o rosto da moça, e deixou-o cair p’r’uma banda, tanto as mãos lhe tremeram. Ficou tempo esquecido olhando aquelas feições de mulher da rua, que estavam agora amarelas e como que entumescidas, onde os olhos meio abertos pareciam de boneca das que falam. Sentiu vergarem-lhe os joelhos, e iarolar p’r’a cova, quando o Cabeça o amparou, gosmando estas palavras com ar até de riso:
— Olhe que quem vai é ela, não é vancê, seo coveiro! Lá na cidade ‘vi dizer que se chamava… como? Valência. Na certeza vancê conheceu essa dona, por isso ficou penalizado, não é? Bamo’ pinchar logo c’o corpo p’r’a cama, que a outra tem sono!
Mas o Pedro virou p’r’a um lado, remaniscando: e d’aí deu de estudar mais uma vez a fisionomia da Valência, abaixando e levantando a cabeça, chegando-lhe as mãosà trança e retirando-as no sofragante. O da carrocinha é que não quis mais retarde: empurrou a moça p’r’a cova, jogou-lhe umas três enxadadas de terra fofa, e saiu resmungando. O sino do Rosário, na cidade, gemia-que-gemia, anunciando mais um cristão que passou, mais outro, logo depois outro ainda…
O Pedro sentiu que lhe doíam demais as fontes, de repente: e deitou-se junto da cova. Vinha-lhe, porém, aos ouvidos um barulho insuportável de rodas, uma batedeira aos dentes, um arrepio por todos os cabelos do corpo, um frio de intanguir a cacunda. Pôs-se de pé novamente, olhou de fora a fora o cemitério, que a luz do sol amarelava, e sentiu uma bruta vontade de fugir, de correr, de sumir-se nalguma grota, nalgum valo, nalgum fundo de boçoróca. E deu acordo de si, na verdade, quando fronteava a caixa-d’água, p’ra riba da estação.
Foi descendo p’r’o campo, cortando no rumo da chac’ra do Leriano, sem reparar mais em nada. Agora, a dor das fontes era uma queimação que se estendia até a coroa da cabeça e o cangote, fazendo-lhe de fogo as orelhas e os olhos. Quando chegou ao esbarrondadeiro, no caminho da chac’ra, parou um pouco. Uma arage’ caíra do morro, vagarenta e quaji fria: a cabeça foi-lhe também sussegando, resfrescando, sussegando. Ouviu bater cinco horas no sino da cadeia: e, como si estivesse perdendo tempo, deitou a correr outra vez p’r a estrada, cambeteando nos caminhos-fundos, pulando as regueiras mais fortes, retardando mais longe o passo, mas não parando mais.
Viu na descida, perto d’um olho-d’água a par co’a cerca da chac’ra do Chico Manoel, um mundão de içás e bitús que fervilhava, estes voando, aqueles alastrando-se p’r o chão, como uma rede escura e desinquieta; e na mesma hora sentiu nas fontes uma comichão persistente, mofina, como si um formigueiro de içás e bitús se estivesse formando lá dentro, a persegui-lo com o andar fino e penetrante dos seus milhares de pés.
Subia agora a lombada do morro, na chac’ra de seo Moisés, e outro formigueiro buliçoso lhe deu na vista, embaixo de um irapuá, naquela arve de quina que tem no meio da estrada: este já não tinha bichos grandes, era um ninho de bitús do tamanho da pulga, mas com asas, e bem se percebia que era um formigueiro pelo doido perpassar de uns e de outros, pois logo os denunciavam as asas, de brancas.
Sem mais quê nem p’ra quê, no entretanto, um casal de curiangos dos miúdos passou relando os ombros do Pedro, que ele bem os sentiu. E o Pedro foi subindo. Mas d’aí a nada voltaram os dois curiangos, desses que têm o porte e o sintoma da andorinha, e relaram novamente os ombros do Pedro.
Suverteram-se. E agora já não tardaram nem um minuto, vieram muito esquipados, muito violentos, e passaram-lhe p’r a cabeça, onde os cabelos se puseram todos de pé, no mesmo artigo.
O Pedro já alcançava a linha daquela cerca de arame que vai dar na grota do Chico Manoel. Entreparou. Viu então que grande multidão dos ditos curiangos fazia uma sinagoga danada nos ares, lá p’r’os lados do Olegário, virando e revirando, em percura, decerto, de mantimento. Aquele despropósito de pássaros já esteve, num baque, pertico dele, percebeu o formigueiro de içás que ele bem adivinhava na própria cabeça, e ficou alvoriçado: era um que lhe tocava a testa e se abaixava, outro que recambiava p’r’osaltos,depois de lhe tirar uma campina natorredas gadelhas, outro que estremecia as asas, estremecia, e ali ficava uma temporada louca, apoquentando-o.
O Pedro saltou p’r’um recanto da estrada, onde tem ûa moita de paus, junto mesmo do areão, puxou p’r a faca, e desmunhecou uma perovinha que estava c’as raízes meio arreganhadas p’ra fora da terra: aparelhou um porrete às carreiras, e recostou-se a um andaguaçú macota, vendo se aquela trapeira acabava. Mal, porém, ergueu os olhos, e olhou em redor, viu que o bando de curiangos se aumentara de mais umas dezenas: e varavam a capoeira, c’uma fúria de fome desesperada, perseguindo-o, catando no espaço livre das folhas os bitús que caíam na tolice de voar.
Deu uma avançada p’r’o largo, já meio demente, c’a testa suando gelo, e principiou a trançar o porrete, p’r’aqui, p’r’ali, p’ra baixo, p’ra riba: e, enquanto a manguara subia, a curiangada rompia por baixo, fomenta a mais não poder: quando o braço ia p’r’uma banda, a curiangada enramava da outra, rasgando chita c’as asas espalmadas, batendo o bico, e escancarando cada goela que era um percipício.
Ocasionado em demasia, conseguiu ainda correr até mais longe. Ergueu os olhos, olhou em roda, e viu que vinham vindo agora, do rumo do Desterro, uns par de curiangos dos graúdos, desses chamados purrutuns, levantando e descendo as asas branquicentas, de dois palmos, mais ou menos: e reparou que já de longe eles tinham assuntado a montoeira de içás e abriam, um por um, o bicão desapoderado, c’uma gula de bicho que também jejua. Na mesma hora as pernas lhe ficaram jiçuís e deloridas, como quando o joçá da cana entra nas carnes. E o suor de gelo tomou-lhe o corpo todo.
Sacou outra vez a faca, fez que cortava e recortava no meio daqueles demônios de asas, mas foi tudo o mesmo que nada: os purrutuns e os curiangos não desacorçoavam, cada vez se entusiasmavam mais, chegando a meter-lhe o bico pela gadelha [135] fora. Sacudia a faca na mão esquerda, o cacete na direita, e o bando parecia engrossar sempre, quaji tapando-lhe a vista em certos momentos, enchendo-lhe os ouvidos de um rumor de corredeira escumante.
Chegou à porteira que dá p’r’a chac’ra do João Júlio, dobrou às canhas, atromentado, sem tino e sem tento, e foi beirando os trilhos. Agora, a barulhada não era só dos curiangos, em roda: lá dentro da cabeça também a bicharia amotinada lhe fazia um guaiú de ensurdecer, como si tivesse ânsia de voar, no mesmo auto, p’r’aquele milheiro de gargantas despregadas. E sentiu recrescer a loucura dos curiangos, e a raiva, enquanto os bitús e içás estalavam de leve as asas tremidas, e as escumanas se lhe encaminhavam p’r’o meio dos miolos, campeando saída a toda a pressa.
Avizinhou-se da grota seca, logo a umas vinte braças da porteira, e quis descansar, escangalhado,sem forças já p’ra dar um passo adiante: e sentou-se devéra, deitou-se quaji, atirando a vista turva p’r’a sarvese p’r’as taquaras,que um pequeno vento balanceava com vagareza e cuidado.
No meio dos curiangos, agora, avultava um, de olhos maiores e asas mais pesadas: aproximou-se, foi-se aproximando, e o Pedro reconheceu uma Valência de penas, que o olhava muito espantada, mas que também tirava seu peito na caça, cravando-lhe o bico, mais fundo, no cucuruto da cabeça, onde mais fervia o formigueiro.
Fora ficando lusque-fusque, já não se lia uma carta. A danação dos curiangos aumentava, no centro deles já tinha uns que falavam rouco e feio, outros que lhe arranhavam e queriam estraçalhar-lhe, c’as unhas, o osso do cangote.
E o Pedro já não teve mão em si: jogou-se p’r’a grota abaixo, numa aflição e num desesperosem termos. O pescoço enterrou-se-lhe p’ro corpo adentro, o corpo ficou de costas; quando abriu ainda os olhos, no aperto da última hora, viu que lhe pendia sobre a testa um purrutum raivento, quaji preto, que era a mesma Valência, bambeando as asas, c’os pés encompridados, e que foi sendo cor de laranja, cor de enxofre, vermelho-escura, até se derreter..
Valdomiro Silveira e a face insólita
do regionalismo no Brasil Bruna Martins Coradini
Em “Os curiangos”, o narrador-caipira Luís Panga rememora os acontecimentos em torno de Pedro Mariano, sujeito recluso e de comportamento estranho, que passa a trabalhar como zelador do cemitério local. Desde que assume o cargo, uma sequência de mortes desperta suspeitas na população. Valência, a única a demonstrar afeto pelo rapaz e por quem ele é apaixonado, decide se afastar após um sonho perturbador no qual é enterrada por ele, vestida de noiva. A volta da jovem à cidade, doente e debilitada, marca a transição da narrativa para um tom mais sombrio. Ao reconhecer o corpo de Valência entre outros mortos, o zelador mergulha em imagens de perseguição e de comportamento anormal dos pássaros: ele sente insetos invadirem sua cabeça, é atacado por curiangos — aves noturnas ligadas a presságios — e acredita ver sua amada transformada em uma dessas criaturas. A princípio negligenciadas pela crítica literária por não serem “suficientemente brasileiras”, não documentais e irreais, as narrativas fantásticas/insólitas sempre foram produzidas em nosso país, abrangendo problemáticas mais universais e as reações que podem delas provir, como o medo, a angústia e o ódio. Nesse contexto, o conto de Valdomiro Silveira ganha força ao aliar o registro do universo rural a experiências limítrofes, nas quais os acontecimentos insólitos emergem como retrato das tensões sociais e psicológicas de seus personagens. 1 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Editora Cultrix, 2015, p. 225 |
Valdomiro Silveira (Senhor Bom Jesus da Cachoeira, 11 de novembro de 1873 – Santos, 3 de junho de 1941) foi um escritor brasileiro, que se dedicou a representar, do ponto de vista literário, o caboclo/caipira, buscando retratar os seus costumes, o seu modo de vida, em obras como Os caboclos, a sua mais conhecida narrativa.(Wikipedia)