ENTREVISTA, POESIA

Como estou dirigindo

Imagem: Reprodução

Por Lucio Carvalho,
para a Especiaria.

Entrevistamos Marco de Menezes, que acaba de lançar o seu mais recente livro de poesia, Como estou dirigindo. O livro é uma publicação da editora Urutau e teve lançamento em Porto Alegre (RS), no último dia 15 de março. Aqui, Marco conta um pouco mais a respeito do livro, seus motivos e a sua trajetória com a poesia, iniciada em livro no ano de 1999, quando publicou As horas dragas. Também apresentamos dois poemas do livro, que pode ser obtido nas livrarias ou diretamente com a editora.

Especiaria “Como estou dirigindo” é um título que dá margem a vários pensamentos. Sob certo aspecto, parece uma prestação de contas, o poeta mostrando como está conduzindo a vida. Os títulos das seções do livro e do poema, aliás, são muito significativos. Apenas para situar melhor os leitores, Marco, em relação aos livros anteriores, tu dirias que ele tem uma linha de continuidade com os anteriores? O que os leitores podem esperar deste novo livro? Tu identificas linhas de força preexistentes ou os poemas são sempre acontecimentos novos para o poeta?

Marco de Menezes – O título geral desta coleção de poemas chegou até mim na condição, banal e automática, de motorista, e sua repetição foi me demandando construções aleatórias, gratuitas, desinteressadas, como aliás parecem me acorrer essas expressões corriqueiras que encontramos nas ruas e que detém uma potência muda de fazer explodir o sentido; pensei que “como estou dirigindo” serviria de mote para o delírio do poema e deixei as camadas semânticas invisíveis se interpenetrarem e mais adiante me formularem imagens; pra variar, não sabemos de antemão sobre o que criamos e, portanto, somos levados pela corrente ora subterrânea ora aérea da música; e – de fato – este poema, que dá título ao conjunto, possui uma sonoridade particular em relação aos outros, a ponto de, de acordo com o que diz o Paulo Damin, pedir uma milonga.

Quando, há um bom tempo, mostrei o poema para a Natalia Borges Polesso, ela rapidamente sugeriu que aproveitasse o título, e foi o que fiz, ainda que não sem algum pé-atrás, pois ainda o conjunto carecia de uma unidade; com o processo de construção do livro e sequenciamento dos poemas, foi ficando evidente que ela estava certa ao indicar o título. Naquele momento, este livro estava para ser publicado e não o foi, e um material mais recente acabou sendo lançado antes (Os ternos de Charlie Parker e outros poemas) – e era um material que eu estava considerando anexar a Como estou dirigindo e, para o bem dele e meu, não fiz. Foram produzidos em momentos de vida/vivência demarcadamente distintos, ainda que evidentemente conversem entre si. Também acabei por juntar ao livro o conteúdo de uma plaquete de 2018, Como se constrói uma melancolia de domingo, o qual também tem o “como” na frente, esse advérbio de modo diabólico sem o qual nada conseguimos alcançar.

Pode ser que haja uma linha de continuidade em relação aos meus livros anteriores, em especial na crescente tendência que enxergo em tentar fracassadamente criar espécies de pequenas biografias condensadas, que aparecia já lá no meu primeiro livro mas que foi ficando mais constante principalmente nos talvez três últimos, associada à tentativa de narrar acontecimentos usando o poema como espaço para tal, de certa forma abandonando aos poucos um tipo de poema mais abstrato (do qual já fui entusiasta). Apesar de tudo isso, os temas que surgem, quando os consigo identificar, são os mesmos: as cartas enviadas do país da infância, o enigma da vida e da morte, o espanto diante dos animais, os objetos irreparáveis e esquecidos e o amor a eles.

Especiaria No dia do lançamento, em Porto Alegre, comentou-se que na tua poesia há uma presença da dúvida, da alternativa e do “algo mais”. Isso se expressa de várias maneiras, com um “ou” ao final ou uma abertura inesperada no fecho de alguns poemas. Como é uma decisão do poeta, gostaria de te pedir para comentar esse ponto de evasão em alguns poemas, como se fosse uma espécie de conversa casual, de um encontro na rua entre o poeta e seus leitores.

Marco – Me agradam os finais em aberto, mas também os inícios no meio, uma tendência ao talvez, assim como certo ruído de fundo cantando uma musiquinha a título de ex-machina, assim como uma sujeira sem nome estragando a assepsia dos versos; creio que essa abertura para várias esquinas venha de algumas leituras: Amuleto, de Bolaño, por exemplo, ou os livros de Thomas Bernhard, ou ainda alguns poemas de Enrique Lihn, cujas narrativas vão encimando possibilidades/frequências/alçapões por onde o leitor vai esboroando suas vãs incertezas, nem ele nem o poeta sabendo onde estão, em qual camada de realidade pisam, ao passo que recursivamente há a volta ao tema para lembrar um pouquinho da história que se está contando, esse terreno menos movediço em que luz e sombra são exatamente isso. Um pouco como na música: Carla Bley, Guinga, Spinetta, The Durutti Column, o chamamé. As falas de uma conversa casual se prestam a esta deriva —paciência se isso já é algo gasto—, se os sujeitos estão dispostos a tal modalidade de delírio.

Especiaria – Teus poemas são muito visíveis, substantivos. Podemos criar várias imagens mentais ao lê-los, em paisagens muito solares. Alguém no lançamento comentou que isso às vezes dá a ver um lado prosaico na tua poesia. Tu te percebes como um poeta observador do mundo, um coletor de memórias e impressões? Como o poeta trabalha estes mundos, o concreto e o afetivo, porque inevitavelmente andam juntos?

Marco – Disse uma vez o poeta Cândido Rolim: “nada chega inteiro ao visível” — esse desencarceramento da imagem carrega muitas coisas laterais quando perfura a membrana delgadíssima a que chamamos de real, de modo que é de se esperar imperfeição, desmesura e muito de fracasso no ato de criar. Quando uma imagem vem ela costuma deslocar o ar de seu entorno e construir comemorativos metonímicos para o bem e para o mal do poema — e isso comparece inclusive nos poemas excessivamente “trabalhados”, não me parece haver controle sobre a totalidade, algo escapa invariavelmente. No meu caso, creio, o que sempre acaba escapando é o jeito de querer contar histórias, histórias que ficaram habitando a mente, muitas vezes não percebidas pela consciência, mas que ganham força por alguma razão: a lembrança de uma fortuita manhã em que alguém cruza por nós na direção de uma porta de barbearia, os postigos verdes, a história de uma faca ou de uma blusa de lã, um mocassim Samello solteiro sobre folhas com equações trigonométricas — creio que há um tanto de prosaico nisso tudo e quem sabe o sarcófago de um contista que não fui.

E o objeto concreto, aquele que surge como a vasilha cheia de água da chuva disposta no centro geométrico de um pátio de grama rala, está, como uma coisa qualquer perdida no mar e incrustada de material biológico, cheio de agarramentos afetivos grudados nele; talvez o poema seja o lugar em que ele se mostre menos puro, mais sórdido, mais próximo de sua natureza selvagem e descontrolada, mesmo que tangido feito boi pelos bretes da linguagem.

Imagem: Urutau/Reprodução

porque Natalia me perguntou sobre como é ser um
homem mas só me ocorreu dizer quando

quando, encostado ao amarelo rugor do muro,
a criança voluntariosa raspou um a um
os botões de mesa do time do pai
(um tanto mais cruel com Loivo, um pouco menos com Beto Bacamarte)

quando, alijado do grupo dos ricos,
já com seu próprio time de botão
voltou do clube desolado
não tendo sido permitida a sua presença
em ambiente tão distinto

quando outra criança disse-lhe
ardente
que não tinha sido ela
que havia sumido com suas revistas
que ela não roubava de pobres

quando levou uma bolada na cara
e nunca mais deixou o banco de reservas
quando seus tênis ganharam uma sola de piche
que o faziam dançar ridiculamente
no chão da escola

quando, no centro espírita,
foi-lhe explicado algo sobre deus e encarnação
mas nada sobre as hordas de triatoma
que infestavam barbaramente o pessegueiro
e com as quais teve pesadelos por muito tempo

quando grudou no peito a foice e o martelo
recortados de uma Status ainda sem nu frontal
e que foram nervosamente retirados
deixando na camiseta uma mancha dura de cola
que denunciou pra sempre sua inabilidade
e seu páthos

quando quis conhecer a Tebaida
[já Ayres Cunha havia morrido
e já seus bichos todos
e isso foi muito tempo depois
de ter morrido Diacuí]

quando quis pular da ponte inglesa
pilotando um fusca
quando quis ter os lábios fúcsia
das travestis de Itaqui
que sequer então existiam
mas pra isso bastava pensar

quando conheceu a guria
mais barra-pesada da vila
e se roçou nos matos e se raspou na brita
a cabeça cheia de artane
onde antes havia um tango e uma garça
ou nada que importasse
mas pelo menos que não fosse algo
que lhe amputasse as mãos
ou lhe cortasse a língua
quando viu seus ídolos na rodoviária
a achou-os pobres e tolos e rudes
e preferiu voltar pra casa
a pé
longa distância
que lhe encharcou a roupa
e lhe embarrou os dentes

quando tudo isso
foi verdade
no dia daquele clarão
tenebroso
na Hungria
e tudo, morte, alegria, miséria, gozo
mistério, tédio, mirabilia, felonia
e tudo, japonas, ponchos, broches, penduricos
cacarecos velhos de outro dia
que já não respondem a seu chamado
nem a piscada, nem a ultimato
como fazem as coisas
de fato
enquanto chegam vindos do horizonte
aqueles pássaros, aqueles bernes, aqueles seixos
que são o encosto onde o mundo
arruína
mas também o muro amarelo onde o menino
risca
tão calmo
os botões de seu pai

§

quando o demiurgo vira as costas

mais nos olhamos
mais nos encontramos
com pessoas de mentira
iguais a nós

não que algo resulte disso emocionante ou raro
ou que afete o nosso jeito súbito
e aos poucos tudo deixa-nos cansados

nós, os espantalhos,
somos muito exatos em nossas vidas
mas não a ponto de não pô-las em dúvida

não sabemos, por exemplo
de que é feito o feno ou a palha que nos enche
nem de qual rolo de tecido aquele que nos cria
tira as tiras de pano que nos cobrem

como homens pobres concedemos e servimos
àquele que perpétuo monitora
e como homens ricos que jamais seremos
gostamos de bons chapéus ou de sapatos
a enfeitar a nossa pouca sorte

aqui nessa lavoura, durante a messe
quanto mais nos olhamos mais nos encontramos
com nossos duplos
que ao final são nossos monstros
que ao final são nossos filhos

se certa vez ao cair a noite no terreno
deres com um dos nossos
e for de tua índole ou desejo
algo bom nos alcançar em oferenda
deixa teu bornal, tua merenda
garrafa de canha pelo meio
anel de merengue, caniço de taquara
ou bem pode ser qualquer outra prenda

nós, os espantalhos, somos fracos
por ter algo novo em que pôr os olhos
visto que a nós mesmos já enjoamos
e de duplos e de monstros e de filhos
e visto que aquele que nos cria
anão feroz, deus enfermiço,
é de mentira e sequer nos olha

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