FICÇÃO

Dois contos de Daniel Françoli Yago

Imagem: I am a bird now, colagem de Léo Tavares, 2025.

Daniel Françoli Yago
São Paulo – SP

I AM A BIRD NOW

Encontraram-me em meu santuário, na ilha flutuante do Paraíso das Pássaras. A tripulação da fragata estelar aportou, uniformizada, botas robustas de couro, armas em punho, exibindo uma arrogância inquestionável em seus gestos. Um general bateu-me continência. Não tardaram a intimar-me de volta ao comando do abatedouro. Justo eu, que acabara de descobrir a liberdade, sentindo asas estenderem-se nas minhas costas, suas penas marrons afirmando minha desejada condição de presa. Em resposta, desfilei meus talentos recém-adquiridos. Planava elegantemente, executava piruetas, repetia frases curtas e até respirava sem aparelhos. Mostrei a beleza plácida de meu bico.  Apresentei minhas novas companheiras: de cacatuas a periquitas, da majestosa pavoa branca à discreta arara celeste. Revelei minhas maneiras preferidas de fazer silêncio e meu poleiro favorito para contemplar o Deus-pássaro. Com orgulho, apresentei nomes que escolhi para batizar meus amados ovos. Mas somente à tripulação interessava a destreza de minhas garras em lacerar carne. “Mostre-nos sua lealdade, Daniel, usando-as contra o Inimigo”, instava o general, vendo nas minhas unhas uma continuidade de suas lâminas. Foi um triste revés descobrir que não havia alternativa para proteger a paz senão degolando um por um, ao som do coro lúgubre das peruas. O sangue espirrava quente, cobrindo minhas penas, empapando as patas, enquanto as harpias, ferozes amigas, devoraram vísceras e olhos ainda pulsantes, estalando ossos com seus bicos. Da carne humana, marmórea e abundante, evolava um aroma quente, adocicado. Acalmei-me enfim, pois já não haveria outro exército: sabia que, na próxima convocação, minha metamorfose estaria completa – e entre as pombas ninguém mais distinguiria minha plumagem suja de sangue.

§

UMA HISTÓRIA CIRCULAR

Cantava a poeta grega: “Mais de uma vez, a sabedoria de Ariadne havia salvado Creta da derrisão. O prodígio arquitetônico do labirinto cumpria a função de impressionar inimigos pela imponência. Enquanto o Minotauro gostava de lá perder-se, em busca de encontrar seu fim pelas mãos viris de um herói, Teseu dava os primeiros passos pelas veredas de Dioniso, ainda que as confundisse com a entrada oficial do Olimpo”.

Ao que respondeu o romântico, dezessete séculos depois: “Para Teseu, nunca houve um labirinto. O destino das Moiras era claro e distinto como um desígnio de Apolo. Quando Teseu conformou o trajeto à sua imaginação de guerreiro, o fio de Ariadne produziu o mapa mais retilíneo da Antiguidade. A sinuosidade do corpo do Minotauro não cabia em seu olhar; por isso, perdeu sua cabeça pelas mãos do humano. Mas Ariadne insistiu: o Minotauro soube identificar, no brilho dos olhos do rapaz, uma solidão compartilhada. Teseu, instigado por aquele corpo incerto e híbrido, aceitou desejá-lo enquanto maravilha, milagre”.

Já eu, acrescentei: “E encontraram-se novamente, como havia de ser. Mas, dessa vez, a astúcia adquirida por Teseu prescindiu do novelo. Submeteu o Minotauro pela força de seus pés. Pisou-lhe o rosto até ouvi-lo mugir, os dedos sensualmente babados de Teseu pela língua bovina, que os sorvia como frutos estranhos. Quando o defensor de Creta percebeu que, de predador, se tornaria presa, ergueu-se uma ereção de touro imberbe. Então Teseu, num gesto cruel e empático, sentou-se sobre o ventre da criatura, abafando-lhe o sexo.”

Assim impediu que Plutão descobrisse que o prazer do Minotauro não estava mais na perdição do labirinto.

Daniel Françoli Yago é psicólogo clínico, tradutor e escritor. É mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP. Foi professor do curso de Psicologia da USCS. Publicou diversos ensaios em livros e revistas especializadas, como “O complexo de Orlando” e “A imaginação dos sexos”. Lançou seu primeiro livro de contos, “A Ascensão do Titanic” (Urutau), em 2024. Seu próximo livro, “O abraço da Quimera: ensaios sobre imaginação, diferença e mundos em queda”, está no prelo pela ed. Sattva.

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