FICÇÃO

O início

Imagem: Mellificium Chirurgiae (detail)

Adriano Espíndola dos Santos
Fortaleza – CE

Começar a escrever. Preciso escrever, para que não se apague no tempo. Houve um incidente que mudou a minha vida. Posso estar exagerando, posso não saber ao certo, mas definitivamente o incidente me corrompeu. Eu era um menino de nove para dez anos. Levava uma vida muito pacata, ainda que turbulenta. Meus pais brigavam muito, por motivos diversos. A principal razão disso é que meu pai bebia demasiado. Era o mote para começar todas as discussões, que redundavam em móveis e objetos quebrados. Eu queria me afastar da minha vida, achava indecente viver assim. Minha mãe só fazia chorar. Não se preocupava com o destino dos dois filhos. Meu irmão, como era mais novo cinco anos, pouco se apercebia do drama. Eu, sim, que pude lhe cuidar. Tentava deixá-lo fora das intrigas. Meu pai, acredite, bêbado, o chamava de covarde. Eu era considerado o filho predileto, porque era amoroso, calmo. Minha mãe, por isso, se aproveitava da minha condição para fazer mudar os planos do meu pai de ir embora. Ela não queria perdê-lo para as inúmeras pragas mundanas. Então, repito, eu era a sua moeda de troca, para os favores psíquicos e corporais de que necessitava, diante de sua carência infinita. No meio de tudo isso, Afonso, meu primo, vinha para a minha casa nas férias. Para mim, era uma mistura de horror com desalinho. Ele era durão, meio maluco, e revirava tudo em casa. O coitado, como classificava minha mãe, era um menino sem modos porque vinha do interior brabo. Minha mãe, já não bastando a displicência com os filhos, queria que o sobrinho morasse em definitivo em nossa casa, para estudar num bom colégio. Isso felizmente nunca se realizou. O ano foi 1989. Meu primo dormia no quarto comigo e o meu irmão. Eu morria de medo dos sons que ele emitia, como um cão sarnento. Bufava. Gemia. Sempre antes de dormir. No fatídico dia, Afonso me obrigou a deitar na cama com ele, sob o argumento de que, se eu não o fizesse, seria açoitado no dia seguinte. Assim o fiz, com profundo medo. Ele pegou a minha mão e colocou sobre seu pênis já duro. Mandou que eu massageasse e imprimisse uma cadência lenta, como se acompanhasse uma canção fúnebre. Ele gozou na minha perna. Eu não sabia o que era aquilo. Quis vomitar. Imediatamente tirei o gozo e passei na cama em que ele estava deitado. Voltei para o meu lugar, me achando imundo. Cobri-me com o lençol, para que ele não pudesse mais me pegar. Dormi e tive imensos pesadelos, todos com a figura de Afonso a me constranger, a me abusar. Nos quinze dias que passou de férias em nossa casa, em três deles eu sofri abuso. Não conseguia mais olhar em sua cara. Mamãe achava que eu tratava mal o priminho e me punha de castigo várias vezes. Meu intento, na verdade, era proteger o meu irmão. Meus pais jamais acreditariam em mim. Então, antes de ele ir embora, escrevi uma carta e pus na sua cama, dizendo que meu pai era advogado e iria colocá-lo na prisão, se ele continuasse com isso. Foi o suficiente para ele voltar para a sua terra e se suicidar. Sim, ele se matou e meus pais brigavam comigo pelo meu comportamento rebelde com ele. O maldito realmente ficou com medo e se foi, rápido. Jogou-se num açude, com pedras pesadas no bolso. Não esperava que fosse assim. Não pude, como deveria, enfrentá-lo. Não pude sequer me curar. Hoje sou um homem que sofre de depressão e ansiedade generalizada. Tenho fobia social. Sou quase um misantropo. Odeio gente de toda espécie. Mas não me mato para não dar o gosto a quem me matou em vida.

Adriano Espíndola dos Santos é autor de “Flor no caos”, “Contículos de dores refratárias”, “O ano em que tudo começou”, “Em mim, a clausura e o motim” e “Não há de quê”. Advogado. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

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