Outono
Estremeço como se o outono
Falasse de mim.
As folhas secas
Transmutam poeira
Dissipando existências;
Em minha respiração
Um verão inteiro desapareceu.
§
O quarto
Silêncio é a casa dos passarinhos.
Os latidos dos cães, o sono.
A árvore roçando minha janela é a noite.
O escuro são meus olhos abertos.
A brisa noturna que invade a fresta amortece a queda profunda dos sonhos tortos.
Na escrivaninha, o óculos despovoado é só um rosto vazio,
Uma máscara meia-face
Morta de mim.
§
O Deus errado
Aqui embaixo dançamos perdidos,
De almas quebradas.
Noite escura:
Não ousamos amanhecer.
O olho de dentro
É regado de fé
Mas não pode ver.
Surgirá
Surge sempre:
O líquido,
O carma,
O Deus errado,
A alma morta.
A promessa é ensinamento,
A guia presa ao sistema nervoso
É o sangue correndo:
Uma ameaça aos caminhos tortos.
O olho de dentro
É regado de fé
Mas não consegue ver.
§
Deus ou cascas
Existe um Deus imperfeito em mim
Que me concebe inteira no chão.
Testemunho o incêndio
Que atordoa minhas raízes.
Nem sempre sei do que sou feita,
Se de Deus ou de cascas.
§
Terra firme
Confio às palavras
O amálgama vibrante
Dos meus desvios
Como se fossem terra firme.
Os poemas desbravadores
Indicam caminhos
Para a confusa trilha dos meus pensamentos.
No âmago do que me traduz,
Recrio o gosto do mar.
§
Erupção
A palavra lava
Principia a epiderme de digitais murchas
Que reclamam poesias;
Explodo o banal que me comove:
Revoam cachorros, redes e coisas sem som.
§
Prestes
As pombinhas invadiram a bougainville branca e o cachorro já não é mais o mesmo.
Minha casa suspira continuidade
Ainda que doa.
Eu passo o pano no chão quando posso
Para que a vida transpire nova,
Com cheiro de lavanda.
Existir é uma rotina
Cheia de curvas.
Fabiana Motta nasceu no Rio Grande do Sul e vive em Brasília. É Bacharel em Antropologia pela UnB. Desde 2007 faz parte do coletivo poético brasiliense Nexo Grupal. Além disso, tem poemas e contos publicados em diversas antologias literárias brasileiras e também uma participação na exposição fotográfica Cuide de Você, da artista plástica francesa Sophie Calle, com fotografias e poemas de sua autoria. Desvios, seu primeiro livro de poesias, foi publicado em 2023 pela Editora Penalux.
