PROSA

Nada me faltará

Imagem: Filippo Morghen, 1776.

Jaqueson Luiz da Silva
São Paulo – SP

Eu não tenho o hábito de frequentar aquele supermercado, porque fica muito longe da minha casa. Mas nesse dia, aproveitando que estava de folga e dando uma volta por alguns lugares comerciais da cidade, resolvi ir até lá, porque queria verificar se nele havia café descafeinado. No mercado aqui próximo, não encontrei na prateleira. Além disso, eu queria verificar outra coisa, em tendo o café nesse supermercado, se seria mais barato. Café descafeinado é muito caro. Tudo o que falta é sempre mais caro. Acertei. O pacote de250g ali está muito mais barato. Fiquei me perguntando também, por que, nesta cidade, tudo o que está mais longe parece mais barato ou tem uma imagem, contraditoriamente, de mais acessível?

Sempre que vou ao supermercado, tenho uma lista com os produtos que estão faltando em casa. Não faço compras grandes, porque moro sozinho. Preciso de bem poucos itens e, produtos perecíveis estragam muito rápido. Se eu comprar dois tomates, fatalmente, em menos de 3 dias, um deles apodrece pela metade, então tenho de jogar fora. Não dá para saber até que ponto no invisível da pele vermelha a podridão atingiu as células.

Depois de encontrar o café, comecei a andar pelos corredores à procura de outros itens que estavam faltando e também de alguns outros que, possivelmente, eu descobrisse que estivessem faltando e eu não sabia até aquele momento. O mercado é a grande ilusão de que nada me faltará.

O mercado não estava cheio, apenas a fila no açougue estava um pouco longa. O açougue fica na parede ao fundo. É preciso atravessar toda a nave do corredor central para chegar até ele e poder vislumbrar principalmente as peças de carne vermelha penduradas no balcão frigorífico. Era uma quarta-feira, fiquei refletindo e analisando por que as pessoas estavam em busca de carne no meio da semana. Não havia nenhuma festa específica no calendário. Bom, não fui adiante com as reflexões. Simplesmente, o poder aquisitivo da população trabalhadora voltou a melhorar e tem sido possível tomar de volta algum de seu pedaço de carne perdido em tantas horas de trabalho.

Depois de pegar o leite na seção de laticínios, fui até a banca de hortifrutis. Olhando para as frutas e legumes, talvez eu pudesse me lembrar o que faltava. Então, eu o vi, indo em direção aos corredores periféricos aquele que, alguns minutos depois, me ofereceria uma experiência que talvez apenas as damas da poesia trovadoresca experimentaram, se é que não existiram apenas nas trovas, cantigas e poemas de seus cavaleiros: ser ao mesmo tempo o senhor e a senhora do amor de alguém. Aquele que naquele meio da semana faria me encontrar dentro daminha própria pele e me reencontrar com o meu corpo sem que ele fosse apenas um pedaço de carne, no entanto, por instante o menino e a menina que eu fui.

Diferente de mim, ele faz as compras para mais tempo, pois estava com um carrinho já preenchido pela metade com produtos. Não sei por que eu analisei. É estranho isso, de olharmos para as compras alheias. Será que também seja um método para lembrarmos o que falta em nossos armários da cozinha? O outro sempre parece saber melhor do que eu o que me falta. Os estranhos e os desconhecidos nos fazem lembrar sempre do rotineiro e do familiar.

Pele morena e olhos verdes. Apesar destes índices, era uma beleza nada padrão. Ele era belo porque foi uma captura de um instante que, pouco depois, perdeu-se como o sentido de um corredor no escuro. Havia algo nele que capturou a minha atenção, não resumida à presença dessas características esperadas de uma beleza masculina pronta. Ainda não sei bem dizer o que é. Ainda me faltam palavras para descrever o efeito dessa atração tão imediata. O que importa é que, nesses poucos instantes de nossas vidas juntos, algo inexplicável atraiu nossos corpos com gravidade.

Igual a mim, ele estava usando um boné. Alto e esguio, bem magro, mas, ao mesmo tempo, com uma impressão de ser fisicamente muito forte. Como em tão poucos segundos o olho humano é capaz de fotografar tantos frames de uma outra pessoa, milhares de fragmentos de imagens por segundo? A velocidade da luz está dentro do buraco negro da íris de nossos olhos. Talvez ele fosse alguns centímetros só mais alto do que eu ou talvez da mesma altura. Foi tudo instantâneo para eu conseguir especificamente descrevê-lo. Não sei se será essa a única vez que o verei. Não sei se o voltarei a ver. A cidade é pequena e minha sorte também.

Havia algo nele que me atraiu muito que, até neste momento enquanto escrevo, não consigo dizer o que é. É difícil de capturar o que nos captura. São milionésimos de segundos em que algo dentro de nós calcula variáveis de sentidos, impressões, memórias e lacunas, feito um quebra-cabeças infinito em que as peças insanamente giram feito um pulsar denso prestes a explodir ou implodir todo um universo.

Eu continuo a andar pelos corredores, seguindo a lógica mercadológica das seções dos produtos dentro do meu método de me lembrar o que me falta. Depois de ficar andando dentro desse circuito, desemboquei novamente no átrio onde ficam os hortifrutigrangeiros, uma espécie de salão aberto, onde os carrinhos circulam livremente, sem o risco de os corpos se esbarrarem, como fatalmente sempre acontece nos corredores. Parei um momento na seção das geladeiras que ficam encostadas na parede e, hesitante, não sabia dizer a mim mesmo se precisava de manteiga, quando senti que alguém tocava meu corpo, num esbarrão, naquele espaço largo e amplo de um átrio onde eu considerava que a pessoas não se esbarravam umas nas outras, onde a arquitetura fora pensada especialmente para o desencontro e o desfile solitário de corpos conduzindo carrinhos e cestos plenos de produtos que faltavam em casa. Nem mesmo os casais, às vezes, famílias inteiras que faziam dessa tarefa ordinária um motivo de passeio, estavam realmente juntas naquele vazio, podendo, mesmo que em um lampejo de ilusão separarem-se e experimentarem novamente mesmo que instantaneamente, como incham os miojos encharcados em água quente, o prazer desesperado de sedarem conta d aprópria finitude e solidão. No instante seguinte, já estavam reunidos no efeito agregador da verificação de uma lista de compras, no que ainda falta para encher os continentes das compras.

Em milésimos de um segundo, no que leva um pelo da pele a se erigir e se vivificar da sua natureza mortificada, eu me virei e meus olhos se encontraram com os olhos verdes e redondos de espanto dele. Acho que os meus olhos castanhos não estavam mais amendoados e surpreendidos por tão inesperado acidente.

Tão rápido quanto o arrepio da minha pele, ele pediu desculpas por ter me tocado. O que mais me impressionou foi que ele estava quase em uma posição de reverência, como se tivesse tocado em algo sagrado, como se tivesse profano algo imaculado e virgem, como se enquanto homem tivesse tocado o corpo de uma mulher inacessível. O tronco um pouco inclinado, as mãos juntas em posição de súplica, os olhos em formato de riso ao mesmo tempo em que constrangidos, as mãos me tocando novamente, mas agora em meu antebraço direito, uma retificação do toque como uma reparação do incidente em voluntária intenção de tocar. Todo esse constrangimento e embaraço, não porque tenha tocado inadvertidamente a parte íntima de um deus, de uma deusa ou uma mulher, mas ele havia tocado o corpo de um outro homem que talvez trouxesse em si a dúvida do filho do homem. Mas onde o corpo de um homem não é homem?

Eu estava de costas ficou evidente, porque me virei, então é bem explícito onde foi que ele me tocou. Sua mão encontrou-se com minha bunda num inesperado tapa de leve. Um tapa na bunda. Escrever aqui nádegas não mostraria todo o embaraço que ele se viu envolvido e que eu também em seus olhos cor de ver o mundo natural, o verde da confusão, quando nascem naquilo que nos é próprio o que vem voando pelos ventos, pelas tempestades, aquilo que a chuva traz, o que cai dos caimentos jogados pelos animais, insetos, pássaros, jogados pelo o que está apenas de passagem, sem intenção, aquilo que cai sem a intenção de tocar o chão ou um terreno fértil.

Pensei, tudo naquele instante, se com a imagem que criei dele, se tivesse tocado em mim em qualquer outra parte do meu corpo, se estaria ali diante de mim como em uma imagem estática de poesia antiga. Talvez sim, eu imagino, mas com um impacto de outra magnitude. Porém, o toque foi na parte ao mesmo tempo engraçada e erótica. O que o Drummond faria em uma situação como esta, riria? Escreveria um poema, certamente.

Semelhante a Jesus no meio da multidão, eu me virei para saber quem era que me tocava. O milagre que acontecia ali não era da ordem da regeneração de um corpo que demanda uma parte de si perdida, um pedido de reconstituição de um membro adoecido, mas era estar diante mesmo da possibilidade de um espelho que me retornasse a uma imagem de mim mesmo perdida. Pode parecer exagerado contar como tudo isso pode ter se passado naquele vão entre mim e ele, no movimento de um gesto, de uma mão que encosta em um corpo, mas é como se a mim fosse restituída a parte semelhante da divindade e eu tivesse hibrida, herética e perigosamente somado em meu corpo a minha outra parte perdida, deixada de lado, caída em algum ponto da minha história que igual a um filme voltava a se projetar diante dos meus olhos iluminados pelo verde lacustre dos olhos dele.

Tenho a impressão de que eu sorri, porque ele me sorria enquanto pedia desculpas por ter me tocado. Eu sorria, obviamente, porque era, inesperadamente, ele que eu jamais esperava que, ali, naquele espaço entre os corredores daquele supermercado, ele que eu apenas havia achado bonito assim que bati os olhos em sua aparência, pudesse tão surpreendentemente estabelecer um contato imediato de tão elevado grau. Bonito feito uma aparição de santo na alucinação do fiel, porque é toda ela feita de luz sincronizada e fantasia ajustada.

Da minha boca saiu apenas a expressão mais comum que se diz em uma circunstância como essa: “não foi nada”. Como assim, não foi nada? Foi. Não tivesse sido, eu não estaria escrevendo estas tantas palavras para tentar dizer o que foi este nada. Foi nada, porque a partir dali eu tive de começar do nada, novamente, semelhante aos deuses contados pelos humanos que sempre têm essa inimaginável missão que é sempre começar a sua obra a partir do nada.

Eu estava suspenso em todo este acontecimento e não me lembro de como foi que ele se afastou dessa confusão ou dessa fusão em mim mesmo, dos meus seres, das minhas partes antes despedaçadas e agora recolhidas e acolhidas em um toque de Midas, que não me faz transformar em ouro, mas brilhar.

As suas mãos foram aos poucos deixando os meus braços e seu corpo girando para se afastar e voltar para a antiga distância que havia entre nós antes desse encontro. Eu girei também meu corpo para a mesma posição antes do milagre e voltei a me indagar sobre o que ainda me faltava diante da geladeira de margarinas.

Jaqueson Luiz da Silva nasceu em São Paulo, em 30 de dezembro de 1977. É formado em Letras e doutor em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Publicou o livro de contos Bem dito o fruto do som e da sombra. Atua como professor de Literatura e desenvolve projetos de criação literária e de escrita de roteiros cinematográficos. Também tem formação em Psicanálise e é membro da Tykhe – Associação de Psicanálise de Campinas.

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