ENSAIO

Écloga V: Verão, de Joseph Brodsky

Imagem: Reprodução/Joseph Brodsky and his cat

por Thomaz Albornoz Neves
Sant’Ana do Livramento – RS

Joseph Aleksandrovich Brodsky (Leningrado, 1940–Nova Iorque, 1996) nasceu em uma família de origem judia. O pai, Aleksandr Brodsky, era um fotojornalista militar e capitão da marinha que depois da guerra trabalha no laboratório fotográfico do Museu Naval. Desmobilizado em 1950, vira freelancer para os jornais da cidade. A mãe, Maríya Vólpert, foi com frequência o arrimo da família como tradutora. Joseph sofre com neuroses. Foi um menino gago e fóbico com problemas de saúde em consequência dos rigores provocados pelo Cerco de Leningrado. Sobre o colégio, escreveu:

Comecei a desprezar Lenin no primário, não tanto em razão da sua filosofia política. Mas por causa da sua imagem onipresente. Eu tinha dificuldade de concentração, além disso, vários dos meus professores eram anti-semitas. Desde muito cedo eu me senti um dissidente.

Aos quinze anos, aprova nos exames para a academia de submarinistas, mas não é admitido por antissemitismo. No ano seguinte, a família recebe um “quarto e meio” (que lhe servirá de título para um pungente ensaio autobiográfico) para habitar na Casa Muruzi. Entre 1955 e 1960, passa de aprendiz de operador de fresadora na fábrica de munições a assistente de dissecação na morgue da penitenciária Kresti; de foguista em uma sala de caldeiras a marinheiro em um farol. Em 61, participa de expedições geológicas no Mar Branco até que um colapso emocional provocado pelo isolamento o traz de volta a Leningrado. Termina sua educação secundária em um programa autodidata para jovens trabalhadores.

Em 1960, conhece Anna Akhmatova que o acolhe. Akhmatova o apresenta à Marina Basmmanova, uma jovem pintora que a retratava e que em 1967 tem com Brodsky um filho, chamado Andrey. Marina foi o motivo pelo qual Brodsky sofre a primeira denúncia à KGB por parasitismo, em 1963. Ao que consta, seu íntimo amigo, o poeta Dmitri Bobyshev, apaixonado por Basmmanova, foi o delator. Depois de um interrogatório, Brodsky tem seus papeis confiscados e é internado em um hospício com o diagnóstico genérico de psicopatia (transtorno de personalidade) usado pelo regime para afastar os inconformistas.

Mais duas internações o levam a ser formalmente acusado. Da perspectiva do governo, a sua visão metafísica da vida não contribui para uma nova sociedade e deve ser punida com severidade. A própria União de Escritores -da qual não era membro- colaborou com a promotoria corroborando as denúncias. Brodsky foi preso em fevereiro de 1964 e julgado em março. Quando a transcrição das notas tomadas clandestinamente no tribunal pela jornalista Frida Vigdorova foi contrabandeada para o Ocidente, o poeta tornou-se símbolo de resistência artística e uma causa célebre. Nelas, consta o seguinte trecho do interrogatório conduzido pela juiza Savelyeva:

Savelyeva: Qual é a sua profissão?
JB: Poeta, poeta e tradutor, eu suponho.
Savelyeva: Aqui não importam suposições. Fique em pé corretamente. Não se apoie na parede. Olhe para o tribunal. Responda ao tribunal corretamente. (Dirigindo-se a mim [Vigdorova]) Pare de tomar notas ou vou expulsá-la da corte.
O acusado possui um emprego normal?
JB: Pensei que era um trabalho normal.
Savelyeva: Responda corretamente.
JB: Eu estava escrevendo poemas. Pensei que seriam publicados, eu suponho.
Savelyeva: Não estamos interessados no que você “supõe”. Conte-nos por que você não estava trabalhando?
JB: Trabalhei. Escrevi poesia, tinha contratos com uma editora.
Savelyeva: E quem o reconheceu como poeta?
JB: Ninguém. (sem desafio) E quem me inclui na raça humana?
Savelyeva: Que estudos foram feitos para isso?
JB: Para quê?
Savelyeva: Para ser poeta! Você ainda não tentou terminar a faculdade onde se preparam, onde ensinam…
JB: Eu não pensei que se chegasse a poeta através da educação.
Savelyeva: E como?
JB: Eu acho… (confuso) vem de Deus…
Savelyeva: Você tem algum pedido?
JB: Eu gostaria de saber por que eles me prenderam.
Savelyeva: Esta é uma pergunta, não um pedido.
JB: Então, não tenho pedidos.

A defesa interrogou respeitadas figuras do meio literário. Vladimir Admoni confirmou a existência de contratos com diferentes editoras para publicar suas traduções e Efim Etkind previu um grande futuro para Brodsky como poeta. Apesar dos testemunhos, a sentença condena ao pseudo-poeta com calças de veludo que falhou no cumprimento do dever constitucional de ocupar-se honestamente para o bem da pátria a cinco anos de trabalhos em uma fazenda de Norenskaia, vilarejo a 650 km ao norte de Leningrado. No Ártico, aluga sua própria cabana. Mesmo sem encanamento ou aquecimento central, possuir um espaço privado é todo um fausto. Trabalha cortando lenha e recolhendo esterco. À noite, escreve e lê antologias de poesia inglesa e americana, em especial Auden e Frost e escreve poemas como Outono em Norenskaia, um lúgubre retorno para casa depois de um dia de trabalho no barro.

A pena foi comutada em 65 após protestos de personalidades como Shostakovich e Sartre. Lev Loseff, seu biógrafo, escreve que durante os 18 meses na solidão do Ártico, Brodsky viveu alguns dos melhores momentos da sua vida. Já Akhmatova ironiza a KGB dizendo que a condenação saíra melhor que a encomenda para a biografia do amigo “ruivo”. O poeta retorna a Leningrado e, para evitar futuras acusações de parasitismo, entra no departamento de tradução da União de Escritores. Mesmo assim, de 65 a 70 tem apenas quatro poemas publicados na União Soviética. Em compensação, é traduzido ao alemão, francês, inglês e lido no Ocidente.

Judeu, russo, com aspirações cosmopolitas e uma inteligência que transborda por osmose sobre o conhecimento adquirido, cedo tornou-se um erudito. Despreza as vanguardas do seu século tanto quanto a poesia de Pound ou de Khlébnikov enquanto aceita a de Eliot. Aprendera polonês por Miłosz e inglês por Donne. Sua escrita de juventude é provocadora, mas apolítica. Se não desafia abertamente ao regime foi porque seu intimismo era um exercício de liberdade individual, ou seja, um ato subversivo per se. Brodsky optou por um auto-exílio dentro da Rússia, protegendo-se da onipresença do estado policial. O isolamento molda um temperamento centrado em seu próprio mundo interior.

De acordo com seu contemporâneo, o escritor Serguey Dovlatov, o poeta vivia à margem do contexto proletário, em seu próprio mosteiro espiritual. É graças à autossuficiência dessa solidão, que Brodsky se adaptaria com rapidez às mudanças de rota do seu caminho.

A densidade da primeira fase da sua poesia comprova que o poeta não falta com a verdade em juízo quando afirmou ser um trabalhador. Poesia devedora de Baratynskij, um solitário poeta do pensamento, pessimista e subestimado em vida que morreu jovem na cidade de Nápoles, em 1844. E também de Tsvetaieva, Mandelstam e Akhmatova que, como ele, preferem a expressão direta ao símbolo. Seu poema é formalmente estruturado e tende ao neoclássico. Os versos rimam e as aliterações internas remetem tanto as suas leituras da poesia isabelina quanto à secura emocional de George Crabbe ou o rigor objetivo de Thomas Hardy.

No ensaio A Canção do Pêndulo, de 1975, discorre sobre os motivos pelos quais Kaváfis é seu poeta predileto. São os mesmos que levam a sua própria poesia servir-se do passado -e da poesia clássica- para refletir o presente. A atitude conservadora de Brodsky, porém, não abre mão da ironia nem desvia seu foco do contemporâneo, o que ocorre com menos frequência no caso de Kaváfis, cujo olhar sobre a atualidade grega é filtrado pela história. O certo é que, apesar do classicismo -suas formas fixas, estrofes e ritmos tradicionais- ambos são poetas cujo ponto de vista sobre o presente é moderno, no sentido de ser a modernidade uma época feita de todos os séculos.

Em 1971, Brodsky é convidado pelo regime a emigrar para Israel, mas se nega. Em 72, está em um avião com destino a Viena.

Eu sabia que estava deixando meu país para sempre, mas para onde, não fazia a menor ideia. Estava claro que eu não queria ir para Israel. Eu nem mesmo acreditei que eles me deixariam ir. Nunca acreditei que me colocariam em um avião, e quando o fizeram, não sabia se o avião iria para leste ou oeste. Não queria ser perseguido pelo que restava do Serviço de Segurança soviético na Inglaterra. Então vim para os EUA.

Ele não mais voltaria a São Petersburgo, nem encontra seus pais ou Marina Basmmanova novamente. Mas segue escrevendo para ela. Os últimos versos com as iniciais M.B. são do final dos anos 80 e estão escritos em inglês. O tom coloquial da estrofe vem da oralidade da sua voz em russo e é tão inspirado e comovido que desafia os tradutores. Não é a poesia que dificulta a tradução, é a prosa inserida nela.

Your voice, your body, your name
mean nothing to me now. No one destroyed them.
It’s just that, in order to forget one life, a person needs to live
at least one other life.
And I have served that portion.

Tua voz, teu corpo, teu nome
nada significam para mim agora. Ninguém os destruiu.
É só que, para esquecer uma vida, precisamos
ao menos viver outra vida
E eu já passei por ela

Auden o recebe na Áustria e media sua ida para lecionar na Universidade de Michigan, onde permanece por quatro anos. Em pouco tempo, Brodsky deixa de ser célebre pelo seu passado para ser conhecido por suas apresentações de poesia e por sua erudição. Transmite à audiência a imagem do bardo que pretende revolucionar a relação entre poeta e público, à moda da oratória russa. Sobre a sua militância poética, Seamus Heaney escreve

Ninguém gostava mais de estabelecer a lei do que ele, e o resultado disso foi que sua fama como professor começou a se espalhar e certos aspectos de sua prática passaram a ser imitados. Em particular, sua insistência para que os alunos recitem vários poemas de cor influenciou as escolas de escrita criativa em todo os Estados Unidos, e sua defesa da métrica e rima e sua alta classificação de poetas não modernistas como Robert Frost e Thomas Hardy também teve o efeito geral de despertar uma memória poética mais antiga.

Joseph obtém a cidadania americana em 1977. Fumante inveterado, leva Derek Walcott a afirmar que foi o maior comprador de tabaco desde Sir Walter Raleigh. Tem apenas 39 anos quando opera o coração pela primeira vez. Seu estado de saúde é frágil e declinará a partir de então. Em 1990, enquanto leciona na França, conhece Maria Sozzani, uma estudante italiana de origem russa. O casal tem uma filha, Anna, nascida em 93.

Basmmanova viveu sob a repressão do regime até o colapso da URSS, em 91, ano em que Brodsky e Andrey se encontram em Nova Iorque. Pai e filho mantém um contato próximo até a repentina morte do poeta, em 1996. Foi sepultado na seção protestante do cemitério cristão San Michele, em Veneza. Sontag, Milosz e Zagajewski estão presentes. No último momento, o túmulo de Brodsky é realocado por estar próximo demais de Pound e de sua esposa, Olga Rudge.

Pertence a Sontag o relato do encontro entre Olga e Brodsky no qual este interrompe o longo monólogo da viúva dizendo que a mancha permanente na reputação de Pound não foi causada pela propaganda radial a favor de Mussolini durante a guerra, mas pelo seu notório antissemitismo. A visita à casa de Olga, não o diálogo, é mencionada pelo poeta na sua delicada meditação em prosa dedicada à Veneza, Watermark, de 92, que com a coleção de ensaios Less Than One, publicada em 86 e as reuniões de poesia A Part of Speech, de 77 e To Urania, de 88, integra o bojo da sua produção.

Teórico contundente, o russo afirmava que a língua é superior à História por resistir a qualquer tipo de variável civilizatória e que a missão de conservar o idioma vivo cabe aos poetas. Esta idealização da poesia é tão irresistível quanto a sua expectativa em um mundo pós-cristão onde o conflito entre bem e mal fosse regido pela ética.

Ao argumentar que a arte e a literatura transcendem os limites geográficos e os sistemas políticos, Brodsky também estabelece os parâmetros para separar a Rússia dos soviéticos. Ao seu ouvido, os recursos da língua eslava são contra-revolucionários quando se opõem à escravizante e mecânica terminologia usada pelos burocratas do partido.

Mesmo naturalizado norte-americano, o poeta nunca deixou de sentir-se russo. O ofensivo poema contra a secessão ucraniana To Ukraine’s Independence [1992] foi escrito por um exilado que se considerava expulso pelo regime, não pela pátria. Apesar de homme du monde, Brodsky sempre foi um intransigente nacionalista. Nascido e criado em São Petersburgo, aprendeu a olhar para as repúblicas periféricas desde o centro histórico, arquitetônico e cultural do império. Quando a URSS colapsou, sentiu-se profundamente afetado pela desintegração do seu território. Para ele, a União Soviética estava associada com o sistema político enquanto a Rússia encarna a linguagem de Pushkin, a identidade eslava e um místico estado de espírito pan-nacional.

Lev Loseff sai em defesa do biografado lembrando que o seu conceito de império tem uma conotação mais genérica. Argumenta que para Brodsky a Itália e a Suécia também são impérios expandidos pela cultura além dos seus limites geográficos, o que é um eufemismo. Para uma melhor defesa das contradições assumidas pelo poeta bastaria citá-lo:

A hero is always best observed from a distance.

Seguem as versões em português de três poemas muito diversos entre si, amostras de ecletismo. Em comum entre eles está o exímio tratamento dado pelo poeta ao espaço e ao tempo, a velocidade expressiva e poder de associação. O primeiro é medido e minimal. Traz seis imagens superpostas em instantâneas de um único momento.

каменные деревни

английские каменные деревни.
бутылка собора в окне харчевни.
коровы, разбредшиеся по полям.
памятники королям.

человек в костюме побитом молью
провожает поезд, идущий, как все тут, к морю,
улыбается дочке, уезжающей на восток.
раздается свисток.

и бескрайнее небо над черепицей
тем синее, чем громче птицей
оглашаемо. и чем громче поет она,
тем все меньше видна.

Aldeia de Pedra

A aldeia de pedra inglesa
Uma igreja engarrafada na janela do bar
Vacas espalhadas pela pradaria
Monumentos à monarquia

Em um terno puído de traça
segue o trem indo, como todos aqui, ao mar
e sorri à filha que parte ao oriente
Um apito soa, o trem passa

Se, de repente, um pássaro canta
sobre os telhados o azul é diferente
E quanto mais claro canta
menor o pássaro

Ao que segue um soneto branco escrito em inglês com o típico trançado de impressões do entorno, sensações, emoções e pensamentos.

Dutch Mistress
to Pauline Aarts

A hotel in whose ledgers departures are more prominent than arrivals.
With wet Koh-i-noors the October rain
strokes what’s left of the naked brain.
In this country laid flat for the sake of rivers,
beer smells of Germany and seagulls are
in the air like a page’s soiled corners.
Morning enters the premises with a coroner’s
punctuality, puts its ear
to the ribs of a cold radiator, detects sub-zero:
the afterlife has to start somewhere.
Correspondingly, the angelic curls
grow more blond, the skin gains its distant, lordly
white, while the bedding already coils
desperately in the basement laundry.

Amante Holandesa
para Pauline Aarts

No registro do hotel as partidas são mais frequentes que as chegadas
A chuva de outubro com úmidos Koh-i-noors
golpeia o que resta de uma calva nua
Neste país plano por causa dos rios
a cerveja cheira a Alemanha e as gaivotas são no ar
como os cantos sujos de uma página
Com a pontualidade de um legista
a manhã entra nos cômodos, encosta o ouvido
nas frias costelas de um radiador, sente o abaixo de zero:
a vida depois da morte deve começar em algum lugar
Assim, enquanto os cachos angelicais
enlourecem, a pele adquire seu distante, senhorial
alvor e a roupa de cama gira
desesperadamente na lavanderia do porão

Écloga V: Verão é composta por um lirismo vertiginoso. Seu olhar muda de foco conforme a perspectiva do que é descrito, da miniatura ao cosmos, em sucessivas cenas da estação. Há uma irresistível celebração à vida própria do entusiasmo das éclogas clássicas nestes versos escritos desde o olhar do adolescente que Joseph foi.

A primeira versão em português baseou-se no poema Écloga V (Summer) traduzido do russo para o inglês por George L. Kline com a revisão do autor. Mais tarde, uma ácida apreciação do trabalho de Kline é revelada pelo epistolário de Brodsky. O curioso é que essas traduções seguiram sendo republicadas e as versões posteriores do próprio poeta não são melhores. Sua insistência em traduzir a rima utilizando gírias e tampões coloquiais como: for sure, I bet, say, frankly, and such, better yet, distende de tal forma a estrofe que sua versão foge do original, seja por alterar o conteúdo, seja por falsear o ritmo. Brodsky foi criticado pelas acrobacias verbais das suas autotraduções, apesar de ter contado com uma equipe de colaboradores que inclui figuras do naipe de Richard Wilbur, Anthony Hecht e Derek Walcott. Robert Hass o defende. Para Hass as traduções feitas por Brodsky devem ser lidas como originais. Mas, há controvérsias. O fato é que tradutor algum recebeu do poeta autonomia para traduzir ao inglês.

Écloga V: Verão
para Margo Picken

I
Volta o mosquito, hino do verão
Formigas suam à sombra da marcela
Da dragona dos pega-pegas a mutuca
revoa, assim sabemos que passou revista
como soldado raso e a centopeia revela
o que significa “mais rente que o chão”

No meio das trepadeiras, entrevista
a torre de epilóbio azula
pelo ângulo com o zênite. A cicuta
insípida balança e saúda
um idoso louva-a-deus. O coração
roxo do cardo é uma jazida

aberta que explodiu apenas parte
das suas riquezas. O ramo do nardo
foi se alongando como a mão
que alcança um decantador
e, igual à mulher do pescador
entre o absinto e o agrião dourado

a aranha remenda sua rede. A vida
é a soma de pequenos movimentos
A cada momento mudam juntos
a penumbra na bainha dos juncos
o tremor nas bolsas do cão pastor
e os rodeios do tomilho ao vento

revelam as leis de um cenário
cujo centro ninguém situa
Trigo e joio deitam ao norte sua
sombra comum, graças ao ventoso
semeador cujo humor ainda gera
por aqui todo tipo de comentário

Cicia o pastiçal, cacarejam
galos, ciscam galinhas, gagueja
um bem-me-quer a margarida
e a Leda de menta, cortejada
pela mata de áster, se agita
e baba. A clareira inundada

pelo sol, suas falenas errantes
pirâmides de urtigas e, no torpor
o pagode das samambaias flutuantes
as colunas em ruínas do anis em flor
o minarete da sálvia em curvada cerimônia
Tudo isto é uma cópia fiel da Babilônia

A versão floral de um reino onde
se pela esquerda me afasto
arrisco voltar pela direita. O longe
é aqui. E atrás da lagarta-de-fogo
como um herói épico, o gafanhoto
é detido por uma jaula de pasto

II
O ar, em essência incolor, é anil
com frequência. Na distância, anil-
escuro. De um modo similar
o campo se aviva. No canto do olhar
as espigas do trigo têm agora
um verdor intenso. Em julho, a flora

rompe relações com o naturalista
a sanguínea que o sol escurece
se parece a pele bronzeada
A soma de belos e feios indo
e vindo afeta a nossa vista
como este azul infindo

A cor das coisas disfarça
a constante avidez por detalhes
que tem o infinito. Massa
infelizmente, não é tanto
a energia dividida pelo quadrado
da velocidade da luz quanto

o corpo contraído em si mesmo
Olha o espaço, por todo lado
sua vacante textura
O modo como a esfera verde-anil
– do rente ao distante –
retém os tons no vazio

Isto é quase fé, um fervor idílico
Zumbindo no papel pegajoso
a mosca soletra em g cirílico
seu nervoso autorretrato
Como um alfabeto, o gado ao longe
escreve a frase de um horizonte

que foge às palmeiras da Ásia
Pertence à veneziana
a manhã de julho na cama
e rufla maços de jasmim, a acácia
estoura nas vagens suas sementes
e o espaço é mais transparente

que a lingerie da adormecida
Julho sufocante! Há cor demais
para a existência. E a luminária
em solstício nos ofusca como Átila
diante do escudo amassado
Depois de tudo, não havia mais

suficiente linho azul no ar. A luz
no corpo aprende sua medida
e refrata. Como o fim de uma estrada
cuja origem foi esquecida
Uma estrada que reconduz
ao aroma de malvas e de feno

III
borboletas, um rio sereno
como o Seym ou o Ordesz
com locais e visitantes de verão
as náiades rosas, cuja seminudez
nos provoca mergulhos, a canção
dos gaios no salso que sombreia

a palidez dos banhistas secando
seus maiôs nos espinheiros
Penhascos, mormaço, o perfume
das agulhas dos pinheiros
e a nuvem que tinge o lago
com um lustre de cardume

Reservatórios, bacias do degelo
essas ilhas d’água na paisagem
cintilando através da folhagem
O sussurro do junco, o vermelho
do nenúfar, o musgo aveludado
lírios, lentilhas e algas marinhas

ou o paraíso para as linhas
E, tal qual Cristo, joaninhas
andam sobre a água. Salta
uma perca para espiar o mundo
como quem chega na janela alta
e por medo de cair recua

Verão de camisas desfraldadas
dos mesmos debates e rusgas
sobre trufas venenosas
e cogumelos com verrugas
quando, ao langor do meio-dia
na hora mais silenciosa

os olhos fecham, e se alguma
abelha pica é por miopia
ou porque te confundiu com uma
papoula ou com a ainda mais
desejada bosta de vaca e logo
revoou, descontente, em espirais

O bosque é um pente desdentado
E ao jovem, dar por certo
de repente que será considerado
“maior que o arbusto e menor que o abeto”
o confunde pelo resto da vida
Trina alto uma invisível cotovia

Verão de exames de geometria
de fórmulas decoradas, do cara ou coroa
da acne, dos atrasos e fracassos
pelo pânico, e o teu sono se povoa
das sombras do colégio politécnico
Só os caniços de pesca no mormaço

abolem com suas chicotadas
as aflições e vemos pelo chão
sandálias e bicicletas jogadas
seus pedais niquelados iguais
às charlateiras de um capitão
Algo na borracha e nos metais

indicam a Europa, o futuro
uma ferrovia por cujo ramal
o vento em rajadas traz o muro
das plataformas, o rosto oval
de camponesas, torres, tanques
e a minhoca de isca sai da lata

fugindo ao mofo dos estanques
A charrete com o arreio
chirriando e fardos de alfafa
pela estrada que serpeia em meio
as searas já segadas e, longe
a igreja em forma de garrafa

entre montes de palha, celeiros
com tetos de ardósia e terraças
em cuja honra, unicamente, o púrpura
poente existe. E a sombra de agulha
de tricô chega até a Polônia, passa
um Fido engolfando a injúria

do cocheiro, então olhas tua bota
mascas um trevo e tua mente vai
à certa loira sardenta e sua escura
casa de pedra. O que cruza, no alto
é uma garça e não o arauto
da tempestade. Glória à temperatura

normal: dez riscos abaixo da habitual
do corpo. Glória a tudo que se nota
perto ou longe e ao que ainda importa,
a camisa úmida secando ao sol,
ao panamá que parece um girassol
e à valsa “Nas colinas da Manchúria”

IV
Cortinados ao poente de verão
Um Stálin ou um Krushev na estação
ao fundo estridente das cigarras
Adegas frias com leite em jarras
e os frascos de geleia caseira
testando as prateleiras. Na aleia

as meias de cal das macieiras
mais brancas à medida que anoitece
No campo, o escuro azula e parece
que a cevada ganha altura.
Cozinha. Vastos traseiros, lenços
nas cabeças e as chamas nas janelas

de mica do forno a querosene
Solene, o jantar na terraça
com batatas de toda classe, mas não só
rabanetes, cebolas e alfaces
diretos da horta e, no pó
o esconde-esconde das garrafas

A fuligem da antiga lamparina
e o fervente samovar, as danças
de sombras na pantalha da cortina
e os talentos dessa arte gestual
O açúcar que distingues do sal
pelo pouso da mosca. A espantas

O pio do falcão noturno. O coaxar
nos canais. A couraça do samovar
com rostos oblongos refletidos
o farfalhar do jornal, os regurgitos
um piano dedilhado na sala de estar
e o olhar de Simónides passa

do arabesco no papel de parede
ao tornozelo e então ao joelho
Um só esgar, de relance, não basta
já que o tecido ao vestir suaviza
a resistência com que a pele
– livre do estampado – desliza

para cima. Então vacila
a chama da lamparina, as conversas
terminam e uma pátina de chá
embaça as taças. Logo, nas cobertas
a flecha da tua bússola vibrará
brilhando apenas e apontando

ao norte não menos imperativamente
que qualquer acusador. Um cão
ladra, a velha cadeira estala
crocita o corvo aninhado no porão
um trem apita. Mas tudo também acaba
por cessar e, mais suavemente

do que se possa ouvir na calma
a folhagem incontável, como as almas
dos que viveram antes de nós,
diz algo no dialeto dos brotos
que soa a farrapos de voz
e a escuras caligrafias irregulares

cuneiformes manchas lunares –
tão obscuras para ti na cortina
que, dando voltas no colchão
tentas por horas decifrar em vão
onde a vírgula e onde o hieróglifo
enquanto lá fora ressoa infinito

ainda não amarelo, o poder da China

Thomaz Albornoz Neves (1963), nasceu em Sant’Ana do Livramento, RS. Autor de “24 verbetes – Ocidente – Ensaios e Traduções” (TAN/2022), “À espera de um igual” (TAN/2021) e outros. O verbete dedicado a Joseph Brodsky integra o livro 24 Verbetes, publicado pela tan ed., Sant’Ana do Livramento, 2022.

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2 comentários sobre “Écloga V: Verão, de Joseph Brodsky”

  1. Nelsa Martins disse:

    Muinto Bom. Gracias

  2. Dilan Camargo disse:

    Ensaio monumental do Thomaz Albornoz Neves. É um desperdício que não esteja lecionando na pós-graduação de alguma universidade brasileira.

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