Fernando Pessoa
Lisboa – Portugal
Num fabulário ainda por encontrar será um dia lida esta fábula:
A uma bordadora dum país longínquo foi encomendado pela sua rainha que bordasse, sobre seda ou cetim, entre folhas, uma rosa branca. A bordadora, como era muito jovem, foi procurar por toda a parte aquela rosa branca perfeitíssima, em cuja semelhança bordasse a sua. Mas sucedia que umas rosas eram menos belas do que lhe convinha, e que outras não eram brancas como deviam ser. Gastou dias sobre dias, chorosas horas, buscando a rosa que imitasse com seda, e, como nos países longínquos nunca deixa de haver pena de morte, ela sabia bem que, pelas leis dos contos como este, não podiam deixar de a matar se ela não bordasse a rosa branca.
Por fim, não tendo melhor remédio, bordou de memória a rosa que lhe haviam exigido. Depois de a bordar foi compará-la com as rosas brancas que existem realmente nas roseiras. Sucedeu que todas as rosas brancas se pareciam exatamente com a rosa que ela bordara, que cada uma delas era exatamente aquela.
Ela levou o trabalho ao palácio e é de supor que casasse com o príncipe.
No fabulário de onde vem, esta fábula não traz moralidade. Mesmo porque, na idade de ouro, as fábulas não tinham moralidade nenhuma.
Dizer uma narrativa é um ato linguístico dar para o qual todo falante tem competência. Para usar uma narrativa como fábula basta que ele a configure como um discurso alegórico, ancorando o "outro" significado ao seu contexto de enunciação. Essa vinculação obriga o ouvinte a não só compreender a narrativa, mas também a interpretá-la, buscando pontos de contatos significativos entre ela e a situação discursiva que motivou sua enunciação. Esse trabalho de interpretação pode ser realizado pelo próprio enunciador da fábula, quando ele mesmo fornece uma moral para a narrativa. Mas também faz parte das possibilidades lúdicas do gênero deixar a narrativa sem moral, para que o ouvinte se veja obrigado à desvendá-la, a partir de indícios textuais ou situacionais. Interpretar uma fábula é, pois, como interpretar um enigma. Maria Celeste Consolin Dezotti In: DEZOTTI, Maria Celeste Consolin (org). A tradição da fábula: de Esopo a La Fontaine. São Paulo: UNESP, 2018. |
Fernando António Nogueira Pessoa (1888 – 1935) foi um poeta, dramaturgo, ensaísta, tradutor, publicitário, astrólogo, inventor, empresário, correspondente comercial, crítico literário e comentador político português, considerado um dos poetas mais ilustres do modernismo e um dos maiores expoentes da língua portuguesa. (Wikipedia)