FICÇÃO

Nós, da General Portinho

Imagem: Maria Williane/Reprodução Zouk

Guilherme Azambuja Castro
Santa Vitória do Palmar – RS

Marlboro era cigarro de homem.

Quando ia para a lavoura, o pai comprava na Tabacaria 007 um pacote para a semana.

Ele saía nas segundas e voltava nas sextas, a caminhonete embarrada até os retrovisores. Uma vez cresceu um pezinho de arroz num pedaço de barro, na parte de trás. O pezinho balançava no meio das minhas pernas, e já dava no meu joelho quando a mãe o arrancou num puxão só. O pai entrava em casa, as botas deixando marquinhas no tapete da salinha do telefone. A mãe ficava furiosa: “não estudei para ser doméstica”, dizia, mas à medida que percebia quão pouco eram dois dias por semana com o pai ia aceitando aquele tipo de felicidade.

Cigarro de mulher era Minister.

Minha mãe fumava no sofá da sala, corrigindo o verbo to be dos analfabetos da Turma 105.

Ela ensinava Inglês no Colégio Estadual.

O batom no filtro, as bitucas se acumulando no cin-zeiro triangular, brinde da Cooperativa de Arroz:

Parabéns, Santa Vitória, por seus 130 anos.

No meio da noite eu botava meu casaco de lã com botões de madeira e ia para a sala fumar.

Sozinho.

Escolhia no cinzeiro uma bituca ainda molhada. Acendia nas brasas ainda vivas na lareira. Sentava no sofá, cruzava os pés sobre a mesinha e ficava ah. Na bituca, havia a saudade que a mãe sentia.

E as vozes da rua General Portinho diziam:
— Ficará no campo, ele, todos esses dias?
— Só penso na criança.

Na General Portinho eu e meus amigos colecionávamos tampinhas.

Minuano limão. Guaraná Taí. Coca. Pepsi tinha o desenho do Michael Jackson, valia o dobro.

Tinha desistido de colecionar tampinhas de cerveja. Na General Portinho só encontrávamos as da Faixa Azul.

Antes de dormir, o pai levava para o quarto o volume doze da Barsa, uma garrafa de Faixa Azul e um copo. Mostrava-me imagens de bisontes enquanto bebia.

As vezes ele misturava água, vinho e açúcar numa jarra e me deixava beber. Enquanto ia enchendo o copo, a mãe dizia:

— Metade, metade.

Se não tivesse cerveja em casa, eu era obrigado a buscar no Bar Calçadão. Saía com os cascos vazios entre os dedos; já havia crescido para carregar garrafas na rua. A névoa encobria as árvores da General Portinho à noite. Quando o prefeito mandou plantá-las, diziam “em seguida as raízes vão rebentar as calçadas, pode anotar”. Estavam enormes, as árvores, cheias de folhas, os galhos caiados até os cotovelos, de onde pendiam os sacos de lixo.

Eu caminhava rente às paredes, o pressentimento de que os fios de alta tensão iam cair a qualquer instante, então eu ia morrer sem ter aprendido a tocar Yesterday no violão.

Cada sílaba um passo,

all – my,

se a última cair no pé direito vou namorar a fulana,

trou – bles,

se cair no esquerdo ano que vem vou ter mais amigos,

seemed,

e essa noite o pai não vai mostrar a carteira vazia se a mãe falar da piscina,

so – far,

nem se ela disser que até o Luís Carlos, que nem formado é, já botou uma no pátio,

a — way.

— Dizem que não pagam IPTU faz dois anos.
— Mas pra botar piscina dinheiro há.

No beco da Corsan encontrávamos meias furadas, espirais de caderno, pandorgas rasgadas nas antenas externas ou pelos gatos da Juçara, avó do meu amigo Camilinho.

Camilinho tinha um cobreiro no braço. Quando o rabo da cobra fizesse a volta completa, ele ia morrer.

Era o que dizia ele, acostumado à ideia da morte.

A sua magreza, a voz quase inexistente, sempre que alguém chegava lá em casa com notícia de morte — ninguém batia, entrava-se, simplesmente – eu pensava no meu amigo mirrado, quebradiço, 600 de glicose, bebendo leite condensado na latinha e emagrecendo, virando um fio de náilon.

Ninguém atinava, não fosse meu pai dizer:

— O pobre é diabético.

Na casa dele podíamos escutar os discos do Roberto Carlos, e havia no pátio um DKW cujo motor estava pifado desde o dia em que dona Juçara resolveu andar dezoito quilómetros com ele.

O pai foi resgatá-la na estrada, com uma corda. E agora ela usava o carro para tomar mate doce com as amigas. Sempre sentava no motorista, porque era a proprietária. O porta-malas do DKW estava cheio de capim-cidreira, que vinha de baixo, da terra, e deixava nele um perfume.

— Camilinho, esses piolhos te sangram o couro cabeludo. Logo tu, que não cicatrizas.
— Assim não chegas ao ano dois mil.

Num dia em que me deu vontade de comer pomba assada, mostrei ao Camilinho o bodoque e, na cadeira de balanço, para frente e para trás, as mãos enfiadas entre as coxas, ele disse:

— A vó não deixa mais sair.

Espichou o braço. O rabo da cobra andava perto da cabeça.

Tocava um disco que dizia:
Oh, Inácio, oh, Inácio
só come farinha seca.

Numa gaveta da salinha do telefone, havia armações de óculos usadas, lentes para miopia, hastes tortas encobrindo as fotos e os postais dos Estados Unidos. Anos 70. A mãe de calça boca de sino azul, sete graus de miopia em cada olho. Uma tarde úmida em Jacksonville, Flórida, cidade portuária, de braço com Francis, a mãe americana; ah, no Brasil os carros não eram hidramáticos?

O pai guardava nessa gaveta as balas do .38. Mas para as perdizes usa-se a espingarda.

Eu tinha idade, deveria saber atirar.

– Podes convidar um amigo. Menos o Camilinho, que é doente.

Atrás da foto estava escrito:

Entre o Mickey e o Pateta. Happy!

Vou descolando as fotos umas das outras: Busch Gardens, acrobatas aquáticos, golfinhos saltando, o Ursinho Pooh recheado com palha, os dentes espaçados da mãe.

Meu avô não ia dar dinheiro para dentista, mas comprou à vista a passagem para os Estados Unidos, pela Varig: minha mãe seis meses longe do meu pai era o plano e, bem, sobraram mil e quinhentos dólares para o casamento. Então, na Igreja Matriz, a bênção do padre Zomar.

Happy.

— Empunha-se a arma desta maneira – o pai tinha uma gordurinha no branco do olho, mas não precisava de óculos para mirar perdizes. Um dia segurei a espingarda contra o ombro e voltei a ter quatro anos, empunhando meu revólver de brinquedo.

Minha vizinha Lili, que morava duas quadras ao norte, tinha sumido. De repente não aparecia mais para brincar. Dias de vontade, de sentir falta. Eu ainda não sabia o que era morte. Para mim, morte era ser levado embora de casa e não poder mais ir na casa de um amigo. Como era a Lili, uma amiga. Ninguém me levaria embora assim, portanto me armei. E da casa que meu avô tinha nos dado, na condição de que se mantivesse no nome dele, não saía sem colocar na cintura o revólver de plástico.

— Que gracioso.

— Pum, a tia morreu. Pronto, pronto.

No bolso, palhetas, cordas de violão, maneirões de aço, as fitas cassetes que mandava gravar na ABC do Som: Legião Urbana, Billy Idol, Ramones era mais fácil de tocar.

A mãe dizendo:

– Convidaste o Camilinho para a reunião dançante?

Atrás do muro, meu amigo diabético espia o pessoal chegando. Os meninos de calças de brim e camisetas Hang Loose para dentro, os refrigerantes em sacolas plásticas. As meninas de trapézio, os salgadinhos em travessas quentes. Roupas compradas no primeiro andar da Quinta Avenida. Atravessam o pátio, entram na garagem.

A mãe:

— Ao menos leva um suco de gelatina para o coitado.

— Dizem que sustenta outra mulher.
— Eu penso é no menino.

No baldio do Figueiredo havia placas de carro enferrujadas, velhas cartilhas do Colégio Estadual, bilhetes usados da Loto. Eu pensava que, se raspasse o Bónus da Saúde dentro da igreja, ganharia um Mitsubishi Eclipse na certa. O barulhinho da unha sobre a redoma onde repousa Jesus Cristo. As velhas me olhando com os rabos dos olhos, “filho de quem?”.

Se ganhasse um Mitsubishi Eclipse, venderia e ajudaria o pai a acertar as contas com o homem que emprestava dinheiro e jogava bilhar na salinha de trás do Restaurante Avenida. Quando ia tacar, o homem falava:

— Humilhar-te-ei.

E o pai não ia mais precisar dormir no banco de trás da caminhonete quando brigava com a mãe.

Eu, nessa época, acreditava em Deus.

— Dizem que a outra mora pros lados do cemitério.
— Só lhe falta um filho.

Mas deixava de acreditar enquanto o pai seguia saindo de casa nas manhãs de segunda e voltando nas sextas, no mesmo horário, sendo que o campo já havia sido passado às posses daquele homem.

Deixava de acreditar

enquanto a mãe, fumando seu Minister, corrigia you must be happy, I must be happy, as pernas cruzadas no sofá, e lá fora as vozes dizendo “de que adianta falar inglês?”.

O fato é que deixei de acreditar

em Deus

quando o cobreiro do Camilinho fez a volta no braço. Foi num meio-dia e quinze de mil novecentos e noventa e seis.


Não só Hemingway é homenageado por Guilherme, mas também o grande tema do livro, que é a solidão. A solidão dos pampas se reflete nas ruas desertas de Santa Vitória de Palmar, no empobrecimento econômico das famílias, nos campos longos povoados de noite, no velho que furta um bilhete de rifa em busca do sonho de fugir da própria vida, no diálogo do homem que vai visitar a viúva do amigo e, ao mesmo tempo em que pranteia o falecido, também está ali para juntar sua solidão com a dela em um ato de amor. São instantâneos repletos de humanidade e sutileza, tornando as cenas descritas por Guilherme semelhantes às pinturas de Edward Hopper: homens e mulheres sozinhos, contemplando o horizonte, em busca de algo que não sabem o que é, mas que não desistem de esperar.

Gustavo Melo Czekster

In: Czekster, Gustavo Melo. A solidão de quem espera. Porto Alegre: Correio do Povo, Caderno de Sábado, 7.01.2023


Guilherme Azambuja Castro (Santa Vitória do Palmar/RS) é formado em Direito e doutor em Escrita Criativa pela PUCRS. Publicou em coletâneas de contos e em revistas literárias. Foi vencedor do 21º Concurso de Contos Luiz Vilela (2011). Em 2014 foi finalista do Prêmio SESC de Literatura na categoria Contos. Foi vencedor do Prêmio CEPE de Literatura, categoria Contos, em 2015. Seu primeiro livro, O amor que não sentimos e outros contos, foi publicado pela editora CEPE em abril de 2016, e foi finalista do Prêmio Açorianos de Literatura. (Zouk)

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