Vem ver esta sanga1 funda
com remansos de água clara:
lá embaixo o céu se aprofunda
a nuvem passa e não pára.2
Numa cisma vagabunda,
olhando-me cara a cara,
quantas vezes me abismara:3
água clara… alma profunda…
E que estranho era o meu rosto
no momento em que o sol-posto
punhas uns longes na paisagem!4
Aprendi a ser bem cedo
segredo de algum segredo,
imagem, sombra de imagem…
Sanga funda é das mas antigas composições de Augusto Meyer (1902 – 1970), não tendo sido recolhida em livro senão em 1957, na edição coletiva de seus versos. O sonetilho mostra grande fluência rítmica e traz em germe uma característica dos poemas finais de Meyer: a melancolia e a introspecção. 1. Termo de uso restrito à região sulina, que significa “pequeno ribeiro”. 2. Note-se o jogo de contrastes, mas na sugestão que na literalidade: “sanga funda” / “água clara”; “céu” / “se aprofunda”. Entenda-se a imagem visual dos versos 3 e 4: o céu reflete-se no fundo da água, o que é uma ilusão de ótica, pois o reflexo se dá à superfície. 3. O verbo abismar-se tem aqui o sentido de “mergulhar”, “aprofundar-se”: abismar-se numa cisma vagabunda. A palavra longes, como substantivo plural, veio do vocabulário da pintura: são os objetos que se representam como distantes. O emprego do verbo pôr e do substantivo paisagem completa a sugestão pictórica do verso.
Darcy Damasceno
In: Damasceno, Darcy. Augusto Meyer: seleta em prosa e verso. Brasília – DF: Livraria José Olympio / Instituto Nacional do Livro, 1973.
Darcy Damasceno dos Santos nasceu em Niterói (RJ), a 2 de agosto de 1922. Os primeiros estudos foram feitos no Rio de Janeiro, onde se bacharelou em Letras pela Pontifícia Universidade Católica. Foi um dos fundadores da revista carioca Orfeu, reduto da geração de 45, e da revista Ensaio, ao lado de Afonso Felix de Sousa e Fausto Cunha. Tradutor de Paul Valéry e outros, foi também ensaísta. Sua obra poética tem início com Poemas (1946) e inclui Fábula serena (1949); A vida breve seguida de O pajem constante (1951); Jogral caçurro e outros poemas (1958); Trigésimas (1967). Faleceu no Rio de Janeiro, em 1988. (Global)
Augusto Meyer (Porto Alegre, 24 de janeiro de 1902 — Rio de Janeiro, 10 de julho de 1970) foi um jornalista, ensaísta, poeta, memorialista e folclorista brasileiro. Foi membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Filologia. (Wikipedia)