POESIA

Um poema inédito de Isadora Krieger

Imagem: Carolina Krieger

1.

com exceção da mãe,

ninguém parece olhar sempre para o mar.

2.

Há algo de decisivo no olhar que precede a nomeação.

o nome é a coroa do eu,

o Enigma nos batiza com as propriedades

de cada água.

3.

antes de ser minha mãe, a mulher mais que amar o homem, já desejava viver de frente para o mar.

4.

livre feito uma criança perdida na praia ela corre para o mar, atira-se às ondas, à volúpia do mergulho,

desaparecer no fundo

ela emerge com a boca escancarada, o grito da vida não se distingue do urro da morte: o gozo da mulher, esguicho a perder de vista, espuma marinha.

mar, amante que o homem nunca suplantará.

5.

eu quero a separação: sou a rosa vermelha rumo ao alto-mar.

6.

minha mãe não havia se separado de meu pai quando, nas madrugadas, com a ponta dos pés, caminha em direção ao meu berço, aproxima seu rosto de minha respiração, e sussurra:  

“minha criança, me ajuda.”

7.

a mãe me levava no fundo do mar

e dizia:

— grita, filha, grita à vontade.

8.

carrego um abismo desde que a mãe-em-mim batizou-me, com aqueles olhos que pareciam olhar sempre para o mar, quando esta distância nos mantinha aliadas na contemplação da falta originária, os navios desaparecendo no horizonte e a saudade de uma imagem vislumbrada, quando eu cabia inteira em seus braços e nós duas colhíamos conchas na areia da praia, as mais solitárias, as mais esburacadas.

9.

adaptar-se a culminância da luz é mais violento do que adaptar-se à culminância da escuridão.

10.

perco-me na luz da mãe, no seu rosto talhado com rigor, no corpo magro que lembra uma canoa ancorada a contragosto, no modo de cruzar as pernas como se tal entrelaçamento fosse capaz de apaziguar a distância em seu olhar.

11.

o linho branco veste o seu corpo como uma gaivota mergulhando no mar.

12.

a Mãe é um círculo cujo centro está em toda parte

e a circunferência em lugar nenhum.

13.

alguns rastros são indomáveis, não se rendem aos mapas, fixam-se em outras paragens.

como escrever o impulso da criança-com-a-mãe que movimenta o balanço mesmo com a ausência dos seus corpos?

14.

mãe

quando a maré recua com ela

as primeiras raízes desaparecem

um dente de leite cai

uma criança corre na larga faixa de areia

trazendo na concha das mãos o pequenino anjo rebelde

o anúncio de sua queda:

é com o próprio corpo que se suporta

a terrível beleza da perda.

15.

envelhecer poderia ser somente mais uma maneira de tentar dizer: mãe.

Isadora Krieger é poeta e publicou os livros de poesia “Tanatografia da mãe” (Editora da Casa, 2022), vencedor do Prêmio Catarinense de Literatura 2023. E “Explorações Cardiomitológicas” (Editora da Casa, 2018), semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura 2019.

Carolina Krieger vive e trabalha em Camboriú, SC. É artista visual e fotógrafa autodidata. Trabalha com fotografia, imagens do seu álbum de família e colagem manual. Vê em suas imagens pequenos rituais de intensificação com o mistério, que nos habita, circunda e fundamenta. Suscita através do seu trabalho a importância do mergulho em si como via de apreensão da onipresença da natureza: visível e invisível. Prêmios: Sony World Photography Awards | Shortlist (2025), Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia (2024), Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia (2024), IPA International Photography Awards  | Official Selection (2024), Prix Photo Aliança Francesa | Menção honrosa (2023), Prêmio PIPA | Indicação (2022), Prêmio Pierre Verger de Fotografia (2021), Prêmio Brasil Fotografia (2013). Realizou exposições individuais no Brasil e na China. Além disso, participou de exposições coletivas no Brasil, França, Itália e Espanha.

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