1.
com exceção da mãe,
ninguém parece olhar sempre para o mar.
2.
Há algo de decisivo no olhar que precede a nomeação.
o nome é a coroa do eu,
o Enigma nos batiza com as propriedades
de cada água.
3.
antes de ser minha mãe, a mulher mais que amar o homem, já desejava viver de frente para o mar.
4.
livre feito uma criança perdida na praia ela corre para o mar, atira-se às ondas, à volúpia do mergulho,
desaparecer no fundo
ela emerge com a boca escancarada, o grito da vida não se distingue do urro da morte: o gozo da mulher, esguicho a perder de vista, espuma marinha.
mar, amante que o homem nunca suplantará.
5.
eu quero a separação: sou a rosa vermelha rumo ao alto-mar.
6.
minha mãe não havia se separado de meu pai quando, nas madrugadas, com a ponta dos pés, caminha em direção ao meu berço, aproxima seu rosto de minha respiração, e sussurra:
“minha criança, me ajuda.”
7.
a mãe me levava no fundo do mar
e dizia:
— grita, filha, grita à vontade.
8.
carrego um abismo desde que a mãe-em-mim batizou-me, com aqueles olhos que pareciam olhar sempre para o mar, quando esta distância nos mantinha aliadas na contemplação da falta originária, os navios desaparecendo no horizonte e a saudade de uma imagem vislumbrada, quando eu cabia inteira em seus braços e nós duas colhíamos conchas na areia da praia, as mais solitárias, as mais esburacadas.
9.
adaptar-se a culminância da luz é mais violento do que adaptar-se à culminância da escuridão.
10.
perco-me na luz da mãe, no seu rosto talhado com rigor, no corpo magro que lembra uma canoa ancorada a contragosto, no modo de cruzar as pernas como se tal entrelaçamento fosse capaz de apaziguar a distância em seu olhar.
11.
o linho branco veste o seu corpo como uma gaivota mergulhando no mar.
12.
a Mãe é um círculo cujo centro está em toda parte
e a circunferência em lugar nenhum.
13.
alguns rastros são indomáveis, não se rendem aos mapas, fixam-se em outras paragens.
como escrever o impulso da criança-com-a-mãe que movimenta o balanço mesmo com a ausência dos seus corpos?
14.
mãe
quando a maré recua com ela
as primeiras raízes desaparecem
um dente de leite cai
uma criança corre na larga faixa de areia
trazendo na concha das mãos o pequenino anjo rebelde
o anúncio de sua queda:
é com o próprio corpo que se suporta
a terrível beleza da perda.
15.
envelhecer poderia ser somente mais uma maneira de tentar dizer: mãe.
Isadora Krieger é poeta e publicou os livros de poesia “Tanatografia da mãe” (Editora da Casa, 2022), vencedor do Prêmio Catarinense de Literatura 2023. E “Explorações Cardiomitológicas” (Editora da Casa, 2018), semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura 2019.
Carolina Krieger vive e trabalha em Camboriú, SC. É artista visual e fotógrafa autodidata. Trabalha com fotografia, imagens do seu álbum de família e colagem manual. Vê em suas imagens pequenos rituais de intensificação com o mistério, que nos habita, circunda e fundamenta. Suscita através do seu trabalho a importância do mergulho em si como via de apreensão da onipresença da natureza: visível e invisível. Prêmios: Sony World Photography Awards | Shortlist (2025), Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia (2024), Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia (2024), IPA International Photography Awards | Official Selection (2024), Prix Photo Aliança Francesa | Menção honrosa (2023), Prêmio PIPA | Indicação (2022), Prêmio Pierre Verger de Fotografia (2021), Prêmio Brasil Fotografia (2013). Realizou exposições individuais no Brasil e na China. Além disso, participou de exposições coletivas no Brasil, França, Itália e Espanha.