1.
um náufrago submerso nos órgãos amarelos de um cão dormindo sob a sombra da árvore: ele agora triunfa dentro do casulo etéreo do sono canino que escala os ramos altíssimos da árvore: o náufrago diz que o coração do cão é o seu barco: a árvore diz que sua sombra acalenta o cão e o náufrago: o sonho traz em si um céu rasgado que escorre por entre as fendas: faz fulgurar os lábios secos e inquietos do náufrago singrando o poente do esôfago canino: o náufrago dorme e sonha: o cão bate violentamente seu hálito no tecido do verão: o espaço se comprime: devo tatear a voz adormecida no cão – assim pensa o náufrago: ele não sabe mais onde começa a sua cabeça nem onde termina as patas do cão
2.
o cão é o seu mar: suas ondas envolvem sua pele de náufrago: a árvore mergulha um fruto dentro do olho canino: o fruto quando aberto é banhado pelas águas salobras deixa-se revelar em sua pintura apodrecida: o rosto labiríntico do náufrago e seu miraculoso reflexo são dois destinos que embora partidos e desiguais se encontram na carne do cão: o náufrago: a árvore: o sonho: a sombra: há de haver uma canção escrita no sangue circunflexo do tempo – diz a árvore: o náufrago e o cão inundados pela letargia: qual deles acordará a manhã em suas carnes cor de barro: quem abandonará a casca carcomida do tempo feito de vidro e metal: o pulmão do náufrago une-se ao pulmão do cão num amarelo em exaustão
3.
o náufrago um dia desejou ser árvore e sendo árvore ter uma morte vegetal: desejou ter frutos e chama-los de filhos: sob a sombra onírica o cão é o caos: e o caos é o mundo do náufrago: nele o suor musical do desejo sujo contorna uma constelação de palavras asfixiadas: onde o silêncio do caos o que era boca agora é uma orquídea entre o nariz e o queixo do náufrago: o náufrago ferido feito de árvore: ele árvore com sua boca ferida ecoa uma fala redonda: o oco da noite paira sobre o eco de tudo: tudo é voz da noite por fora dos órgãos em vórtice: tudo é noite a perambular pelas artérias do sonho: o cão canta dentro do fígado do náufrago sorvendo toda água: o fígado do náufrago mastiga a carne enferma do cão: é preciso dar cor a convulsão da melancolia: na boca do náufrago pétala a pétala urge vermelha orquídea: a orquídea voa desgarrada num último e abissal movimento e acena para o náufrago sem ar em lugar nenhum
Carlos Orfeu nasceu em Queimados, Rio de Janeiro. Lançou “nervura” em 2019 e “invisíveis cotidianos” em 2020, ambos pela Editora Patuá. “Ramagem pulmonar” em 2021 e “David Lynch e a viagem vertical ao ventre de sua polpa abjeta” em 2023, ambos pela editora Primata. “Nos dentes dos olhos outra fome de ver”, em 2023, pela Editora Urutau.